Entrevista

Alberto Roque: “O Douro tem o vinho e nós temos a música. É a nossa marca!”

12 ago 2021 15:10

O maestro deixou a Orquestra de Sopros da Escola Superior de Música. Fala da importância da agregação da música com a comunidade, do salto qualitativo das filarmónicas e do potencial criativo de Leiria

“Nunca tivemos tanta gente formada no sector artístico e com tão alto nível, como agora”, Alberto Roque
Nuno Brites | IntouchStories
Jacinto Silva Duro

O presidente da Fade in, Carlos Matos, durante uma sessão de apresentação da Leiria Capital Europeia da Cultura, disse que o título de Leiria Cidade Criativa da Música da Unesco não se começou a escrever há dez anos, mas nos anos 60 e 70. Concorda?
A Leiria Cidade Criativa da Música da Unesco começou, no século XIX, com a criação das bandas filarmónicas! É óbvio que o Carlos tem razão, no sentido em que houve um “salto qualitativo” nessas décadas. Se calhar, temos de recuar menos... Se olharmos para a qualidade, de há 25 anos, das 11 bandas do concelho de Leiria... era mediana, ou abaixo. Houve um salto qualitativo grande que começou pela formação dos músicos. Muitas bandas enviaram vários para o conservatório, tal como nós fizemos na SAMP, e atrás de mim, do Paulo Lameiro e do Fernando, vieram outras gerações que se foram formando e hoje são docentes em muitos outros estabelecimentos de ensino ou que foram para o estrangeiro. As bandas de Leiria conseguiram motivar esses jovens para uma formação a alto nível. As formações eram muito conservadoras nas questões dos ensaios, do rigor e da disciplina. Se falhássemos a muitos ensaios, diziam-nos que não fazíamos falta alguma. Perderam-se muitos músicos assim. Com o tempo, começaram a perceber que era mais positivo ter um músico com melhor formação, mesmo não indo a todos os ensaios, mas que estava presente nos importantes, a motivar outros jovens pelo seu exemplo. Começámos a ter formações com muita gente formada e o nível subiu. Automaticamente, o nível dos maestros também teve de subir. Eles fizeram formações, reciclagens e masterclasses e a qualidade global das bandas aumentou. Em Leiria, há outro aspecto fundamental, que foi a criação da Banda Sinfónica da Associação das Filarmónicas do Concelho de Leiria (AFCL). Levámos 20 anos, desde as primeiras conversas à concretização. Nos anos 80, no conservatório, em Lisboa, já falávamos dessa possibilidade. Mas nunca aconteceu nada, até que houve uma reunião entre o vereador da Cultura e a AFCL e, por casualidade, a minha Direcção não podia ir e fui eu. Estavam-se a discutir os problemas normais, o financiamento, a falta disto e daquilo... levantei o braço e fiz uma provocação. Perguntei o que nós, as bandas, já tínhamos feito para convencer o vereador a dar mais dinheiro. Aproveitei para falar do projecto de criação de uma banda sinfónica, que reuniria a massa crítica e qualitativa das nossas bandas. A coisa correu bem e todos ficaram sensíveis ao assunto. Começámos a trabalhar, criámos um regulamento e, nesse ano, deu-se o primeiro concerto. Juntámos os melhores músicos da AFCL, oferecemos-lhes uma semana de formação, com um maestro de topo. O primeiro foi Jean-Sebastien Béreau, maestro de renome internacional que foi o meu segundo professor e professor do meu primeiro professor. Foi uma maneira excelente de estrear a iniciativa e o Município percebeu que a matéria-prima era representativa dos melhores amadores das bandas. Agora, o Concerto de Ano Novo, é realizado sempre pela Banda Sinfónica da AFCL. São mais-valias que ajudaram a obter o título de Cidade Criativa da Música da Unesco.

E boa parte dos músicos com raízes na região e mais conhecidos a nível nacional e internacional, também passaram pelas filarmónicas.
Sim. Até os das bandas pop ou do jazz. Temos o Rui Costa, temos o João Maneta, o Manuel de Sousa (Manolo) e outros, que passaram pelas bandas, e hoje são vibrafonistas e guitarristas de jazz. Nos anos 90, a SAMP criou uma rubrica chamada Noites de Jazz e começámos a trazer pessoal do Hot Club, para fazer formação cá. Foram sementes lançadas à terra. Essas oficinas criaram uma certa apetência e houve uma geração que aproveitou. Foi o caso do César Cardoso, mentor da Orquestra de Jazz de Leiria, que foi um dos primeiros dessa geração. A reboque dessa semente, reactivou-se o Festival de Jazz da Alta Estremadura. Foi-se movimentando a música de Leiria em vários universos. Numa candidatura a cidade criativa, o facto de existirem 11 bandas, a quantidade de músicos que elas envolvem, quem saiu destas bandas - as bandas pop, os Silence 4, e muitos outros projectos mais recentes com uma variedade musical muito abrangente -, não tenho dúvida que contribuíram para a cidade conseguir o título.

A boleia que deu à luz um maestro
Nasceu em França, em 1967, filho de emigrantes que partiram em busca de uma vida melhor, no início dos anos 60. Alberto Roque recorda as férias de Verão, em Portugal, como momentos de liberdade e felicidade, longe da confusão de França. “Acabei por dizer aos meus pais que queria mudar-me para cá. Eles aceitaram e deixaram-me vir, sem eles, para casa dos meus tios.” Um dia, enquanto esperava pelo autocarro para o levar dos Pousos para o antigo “ciclo velho”, um carro, conduzido por um agente da PSP parou e ofereceu-lhe boleia. Alberto aceitou. Começaram a falar e o polícia falou-lhe do filho, mais ou menos com a mesma idade, que estava na banda dos Pousos. Era Paulo Lameiro, musicólogo e, mais tarde, director artístico da SAMP. Fizeram amizade e Alberto também ingressou na filarmónica. Após aprender solfejo, mais rápido do que aquilo que o mestre ensinava e de experimentar alguns instrumentos - o primeiro foi uma “trompinha de nossa senhora” e a seguir o clarinete -, acabou por ficar com o saxofone. Mais tarde, foi músico da banda da Força Aérea, o que lhe abriu a porta para ir estudar no Conservatório de Lisboa, onde se licenciou em Saxofone. Seguiu- -se outra licenciatura em Direcção de Orquestra, na Academia Nacional Superior de Orquestra. Em 2004, foi convidado pela Escola Superior de Música de Lisboa para montar e dirigir uma orquestra de sopros, o que fez, nos últimos 17 anos. Dirigiu ainda a Orquestra Metropolitana, a Orquestra do Algarve e a Filarmonia das Beiras, além de ter uma carreira internacional. 

Com tantos valores, numa candidatura a Capital Europeia da Cultura, poderá haver a tentação de sobrevalorizar a primeira de todas as artes, quando temos bons exemplos em manifestações como o teatro ou a dança?
Estar-se-á a fazer um esforço para compensar as outras áreas. Se calhar, ao longo das gerações, não soubemos cuidar bem as outras artes. Em Leiria, não tivemos apenas bons exemplos na música. Desde há décadas que temos figuras importantes da cultura nacional na arquitectura, na pintura, na escultura... grandes mestres. Tivemos, há pouco, a exposição Nós, no Museu da Imagem em Movimento, que fazia um retrato incrível dos pintores e escultores, artistas de grande dimensão, nacional e internacional. Mas temos poetas... e muitas áreas culturais. Agora, em termos de disseminação pelo território, as bandas filarmónicas são uma marca distinta. Não haverá muitos concelhos a nível nacional que tenham 11 bandas tão activas e dinâmicas.

“O nosso País nunca foi um sítio onde se investisse realmente na cultura”
Alberto Roque

A imersão precoce no mundo da música, como acontece nos Concertos para Bebés, projecto onde participa, pode ajudar a melhorar os jovens a alcançar outras dimensões intelectuais, a melhorar a apreensão de conhecimentos e até no trabalho de equipa e o relacionamento interpessoal?
A questão dos benefícios, cientificamente, é alvo de uma grande discussão. Fala-se do “efeito Mozart”... mas há uma coisa que, de facto, é indiscutível. Se olharmos a nível planetário para os povos, a música faz parte de todas as culturas. É universal. É um veículo de comunicação entre povos

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