Trabalha numa equipa que busca uma vacina contra a malária, no Instituto de Medicina Molecular. Há quanto tempo começaram a investigação?
Desde o início de 2011. Há mais de nove anos. Ainda estamos a trabalhar na optimização de doses e na forma de a administrar. Procuramos financiamento para pagar os próximos testes em humanos, com uma nova fórmula, com a dose que acreditamos ser a correcta e, caso haja dinheiro, com uma versão 2.0 da nossa vacina, que terá uma manipulação genética diferente, que confere maior protecção.
Para a Covid-19, fala-se num ano ou dois para uma vacina, sendo que, só depois, poderemos voltar à normalidade.
Como vacinólogo, um ano ou dois para uma vacina parece-me extraordinário. Se acontecer, será um feito da comunidade científica e da Humanidade. Claro que nunca houve um momento onde tantos esforços convergissem para desenvolver uma solução. Além disso, não é justo comparar uma vacina contra a malária, por exemplo, com uma contra o coronavírus SARS-CoV-2, pois estamos a falar de organismos de complexidade diferente. O SARS-CoV-2 tem uma dezena de genes, enquanto o parasita da malária tem cinco mil... Nós, humanos, temos 32 mil. Agora, está-se a empregar tecnologia que foi desenvolvida desde há muito para outras doenças respiratórias causadas por vírus da mesma família ou com comportamentos similares. Sendo optimista, um ano para uma vacina é um feito! Olhando para os players que estão a fazer esta pesquisa, já têm os instrumentos, apenas precisam de os adaptar com informação relativa ao SARS-CoV-2, para criar a vacina. É o caso da Inovium e ainda da GSK - GlaxoSmithKline e da Sanofi, que uniram esforços e são dois gigantes com o know-how de como fazer e produzir vacinas em larga escala. Teremos a possibilidade de vacinar em poucos meses, milhares de pessoas.
Mas, produzir e administrar uma vacina para tantas pessoas não se fará em duas ou três semanas.
Nem de perto, nem de longe. A vantagem de ter a GSK e a Sanofi é que eles já têm a plataforma de vacinação estabelecida - o agente imunizante -, enquanto que as empresas mais pequenas têm de a criar e provar que ela funciona, mas ainda optimizar a produção em larga escala. A GSK tem aquele que deve ser o melhor adjuvante conhecido - um elemento da vacina que aumenta a resposta do sistema imunitário, que é adicionado a várias vacinas - e a Sanofi tem o sistema de expressão proteico, o veículo que permite produzir a proteína do coronavírus que o sistema imunitário tem de reconhecer.
O que sentiu quando ouvir dizer que o presidente Trump tinha tentado comprar o exclusivo para os EUA da mais promissora patente de vacina a uma empresa alemã?
Um misto de vergonha e orgulho. Vergonha alheia por comportamentos como esse ou pela suspensão do financiamento à Organização Mundial de Saúde, que roça o homicídio por negligência. Por muitas razões que tem ou deixe de ter, não é agora o momento, no meio de uma pandemia, de cortar o financiamento ao organismo que tem de estar no controlo e a aconselhar o que fazer. Senti orgulho porque a comunidade científica se insurgiu e ele não conseguiu. Imperou o bom-senso e a ideia de que, quando houver uma cura, ela será para todos. No mundo, nos últimos tempos, meia-dúzia de pessoas mais radicais, alucinadas e levadas por um sentido de nacionalismo e de todas as formas com que o egoísmo se expressa, foram postas em cargos de decisão e de poder, e condicionam a forma como as sociedades respondem aos problemas económicos ou de saúde pública. Na própria UE, andamos todos a discutir quem paga o quê, quando nos deveríamos estar todos a entreajudar.
Aponta-se a hidroxicloroquina, medicamento usado na profilaxia de malária, como algo que ajuda a curar a Covid-19. Há provas válidas de que funciona?
Toda a história da infecciologia mostra que, se queremos verdadeiramente debelar a doença, o que se tem de controlar é a transmissão. Tem-se de parar o surgimento de novas infecções e não de tratar ou curar infecções que já se produziram. Quando uma pessoa com Covid-19 cai nos cuidados intensivos, o saco de ferramentas farmacológicas para a curar é minúsculo, para não dizer inexistente. O mito da cloroquina junta a estupidez de alguns decisores políticos com a de outros, com capacidade mediática, à nossa pressa de arranjar solução. Houve um estudo de um investigador francês a dizer que funcionava, mas o estudo não é sólido e criou logo dúvidas na comunidade científica. Na semana passada, o primeiro estudo científico sério veio dizer que nada faz à Covid-19. Entretanto, os doentes com lúpus, que estavam a ser tratados com cloroquina, tiveram dificuldades em arranjá-la. Além disso, algumas pessoas acabaram por sofrer os seus efeitos secundários. A droga não é recomendada para doentes cardíacos. Outro medicamento que ia pelo mesmo caminho é a Ivermectina, que é um desparasitante de uso geral, usado para matar as pulgas nos cães ou os piolhos. Para controlar a transmissão, só há duas formas: uma vacina ou controlando o comportamento das pessoas, pois são elas quem transmite a doença. Por isso, o distanciamento e o afastamento sociais são, neste momento, a melhor ferramenta para controlar a transmissão. No caso da malária, onde o agente de transmissão é um mosquito, a melhor maneira de prevenção tem sido matar esses insectos. Na Covid-19, temos de controlar o comportamento dos humanos. O coronavírus é oportunista, usa-nos como veículos de transmissão, porque somos promíscuos nos nossos comportamentos.
Como vai ser a "nova normalidade"?
Vai ser um equilíbrio entre aquilo que se consegue impor, mudar costumes e a progressão da pandemia. Acredito que, até haver uma vacina, a única forma de conseguirmos voltar à normalidade é se todos ganharmos imunidade contra a Covid-19, a tão falada “imunidade de grupo”. Isso significa que nos vamos, aos poucos, expondo ao vírus e ganhando capacidade de nos proteger de novas infecções, bloqueando a transmissão na sociedade. Fazer isso, implica proteger os mais vulneráveis e expor a população, a pouco e pouco, de modo a conseguirmos a imunidade. Mas, para acontecer de uma forma controlada, precisamos de analisar o progresso e, para isso é essencial, “testar, testar, testar”. Temos de perceber quanta da população esteve em contacto com o vírus e se tem anticorpos. A tomada de acções inteligentes tem de ser feita sempre com informação na mão e para a ter é preciso testar o máximo de pessoas para saber que vírus estão a transmitir. De seguida, temos de testar para perceber quem já esteve em contacto com o vírus, quem já tem anticorpos e estará protegido e, finalmente, temos de perceber se ele está a mutar... e se estamos a receber novas estirpes vindas de outros pontos do planeta, quando as viagens aéreas voltarem a estar abertas. Isto exige que, até haver solução, as comunidades científica e de saúde estejam activamente a trabalhar nisto e a controlar. Do lado dos cidadãos, a regra vai continuar a ser a máxima protecção possível e evitar comportamentos de risco.
E a vacina contra a malária em que está a trabalhar?
Dentro de dias, eu e o Miguel [Prudêncio], com quem faço equipa, iremos apresentar numa publicação da especialidade, os resultados do ensaio clínico que fizemos. É uma ideia meio maluca que, em 2011, recebeu da Fundação Bill e Melinda Gates, 100 mil euros para demonstrar que tinha pés para andar. Após isso, recebemos novo apoio da fundação e já vamos em cerca de três milhões de euros de financiamento deles. Quando terminou a demonstração pré-clínica e se passou para o ensaio clínico em humanos, passámos para a PATH Malaria Vaccine Initiative, que coordena o desenvolvimento das mais promissoras vacinas contra a malária. Começámos o ensaio clínico, na Holanda, há pouco mais de dois anos e testámos a vacina em 20 pessoas saudáveis, com bons resultados. Conseguimos demonstrar que a nossa estratégia de vacinação funciona e tem um efeito biológico capaz de espoletar uma reacção imunitária que dá protecção contra a malária.
Em que é que a vossa abordagem é diferente?
A vacina que propomos é de "organismo inteiro", que utiliza todo o patogéneo, em forma atenuada, para produzir uma resposta do organismo. O que propusemos foi utilizar um plasmodium da mesma família do que infecta os humanos, mas que não nos causa doença. Escolhemos o da malária de ratinhos e transformámo-lo geneticamente para que expresse, na sua superfície, moléculas do parasita humano. Isto foi essencial para termos uma boa resposta protectora. Basicamente, mascarámos o parasita de ratinho, com um "casaco de proteínas" do parasita humano. Assim, garantimos que estávamos a apresentar ao sistema imunitário as proteínas do parasita humano, que são a chave para uma boa resposta protectora. Fomos os primeiros a utilizar um parasita geneticamente modificado e fomos os primeiros a usar um parasita não humano.
Como tem sido o quotidiano no IMM?
Na Faculdade de Medicina e no IMM, quando apareceu o primeiro caso de Covid-19, sentimos que havia um sentimento de urgência, tanto que as faculdades de Medicina e de Farmácia, em Lisboa e no Porto, foram as primeiras escolas a fechar. Essa previsão permitiu escrever estudos a recomendar que se fechasse tudo. Mas isso também nos fez ver que o sistema não estava preparado. Os clínicos do Hospital Santa Maria que também são investigadores no IMM, estavam assoberbados com o que estava a acontecer. Criámos então a IMM Task Force, que montou os primeiros testes de SARS-CoV-2 com materiais portugueses, em colaboração com NZYTech, que permitiu adaptar um teste e um protocolo, para utilizar os nossos laboratórios para fazer o máximo de testes possível. Mais de 60 pessoas das 500 que trabalham no IMM voltaram como voluntários e começaram a fazer testes de manhã à noite. Pessoalmente, com o Biobanco do Santa Maria, eu e a minha colega Helena, montámos um laboratório e formámos uma equipa de voluntários para recolher amostras de pacientes infectados e estudar por que razão há pessoas que desenvolvem a doença de modo mais grave e outras conseguem lidar com ela sem problemas.
É um estudo que promete ser longo?
Na crise anterior, toda a gente era economista.
Agora, todos são biólogos e epidimiologistas e lançam bitaites sobre o que vai acontecer e por que não se faz isto e aquilo. Espero que o investimento em ciência seja, por fim, reforçado, agora que o público percebeu o impacto da actividade dos cientistas na sua vida. Temos de ter conhecimento de base para construir soluções. Para o percurso ser feito, é preciso financiamento sustentado, programado, a longo prazo e ritmado, de forma a que se produza cada vez mais conhecimento e novas ferramentas para lidar com pandemias quando elas aparecem. Não é no momento de aflição que se vai dar dinheiro à ciência e aos investigadores para eles produzirem, depressa, uma solução milagrosa. A ciência não é uma corrida de 100 metros, é uma maratona! Este vírus é parecido com o SARS... quando acabou o SARS, acabou o dinheiro. O que assistimos é que, num ano há bolsas, noutro não há. Há cortes... A maioria dos investigadores que fazem estes estudos são precários, bolseiros, sem sequer direito a Segurança Social.
Cura para a malária
António Mendes, 39 anos, natural de Leiria, viveu e cresceu na Boa Vista, licenciou-se no Instituto Superior de Ciências da Saúde, na Costa da Caparica, e estagiou na John Hopkins School of Public Health, nos E.U.A., considerada a melhor escola de saúde pública do Mundo.
No seu percurso académico, estudou ainda na Alemanha e doutorou-se no Imperial College, de Londres.
Regressou a Portugal e tornou-se investigador do Instituto de Medicina Molecular (IMM), em Lisboa, instituição independente de investigação, acoplada à Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, numa equipa financiada pela Fundação do patrão da Microsoft, Bill Gates, na busca de uma vacina contra a malária, doença que afecta o desenvolvimento de muitas nações.
Fez trabalho de campo na Etiópia, nos Camarões e noutras zonas afectadas por essa doença.
Trabalhou com a directora executiva do IMM, Maria Mota, até 2013, e, actualmente, faz equipa com o investigador Miguel Prudêncio, na concepção de uma vacina que já foi testada em humanos, com 95% de sucesso e que deverá chegar a um número absoluto em breve.