Entrevista

António Poças: "As empresas estão a fazer das tripas coração para manter os postos de trabalho"

16 abr 2020 19:50

Presidente da Nerlei diz que "o governo tem sido muito célere a exigir dos outros, mas menos a cumprir a sua parte" e que vários empresários se queixam do atraso no reembolso do IVA, por exemplo

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Ricardo Graça
Raquel de Sousa Silva

Vários especialistas têm afirmado que esta pandemia está a levar muitas empresas a darem um salto tecnológico de dez anos. Concorda?
Como se costuma dizer, a necessidade aguça o engenho. Não sei se são dez anos, mas o que se percebeu é que é possível. Na inCentea fazíamos sempre reunião presencial com os responsáveis das várias unidades de negócio. Havia uma pessoa que representava as empresas de Angola, Moçambique e Cabo Verde, que nunca participavam. A última reunião foi feita através do [Microsoft] Teams, não havia razão nenhuma para não participarem. E questionamo-nos por que é que não participavam antes. Não cabe na cabeça de ninguém que daqui para a frente não passem a participar. A mudança de mentalidades não é por falta de tecnologia, é por nós próprios não estarmos disponíveis para mudar comportamentos. Já muitas pessoas me disseram ter chegado à conclusão que faziam viagens de avião para terem reuniões que na realidade eram completamente desnecessárias. Podiam perfeitamente ser feitas desta forma [online]. Outro exemplo são as assinaturas digitais e as facturas electrónicas. A generalidade das pessoas não estavam a usar, ou usavam deficientemente. Quando esta situação acabar, não vamos voltar ao ponto onde estávamos, estaremos um bom bocado à frente. Veja-se a quantidade de lojas de comércio electrónico que foram criadas. 90% não irão sobreviver, temos de ser realistas, mas algumas terão sucesso. Houve um salto tecnológico, sim. E houve sobretudo uma tomada de consciência de que as coisas podiam ser feitas de outra maneira.

Na região, rapidamente várias empresas se associaram ao ensino superior para produzir equipamentos de protecção e para doar verbas a diversas entidades, e iniciativas semelhantes surgiram também com o envolvimento de associações, ente elas a Nerlei. É a capacidade de iniciativa e o espírito de resiliência a mostrarem-se uma vez mais?
As iniciativas de produção de material, como viseiras, são das empresas e o mérito é delas. Não foi a Nerlei que fez, nem que dirigiu os movimentos. A associação está aqui para ajudar, é um facilitador e conciliador de vontades, nada mais. Nos movimentos e iniciativas que têm surgido estão envolvidas diversas associações, bem como o Politécnico de Leiria. É reconhecido que o tecido empresarial da região de Leiria é composto por empresários muito empreendedores e com uma grande capacidade de resiliência e de adaptação. É nestas alturas que isso se vê. Como se viu na última crise, quando as exportações aumentaram tanto. Foi mérito das empresas. Com o problema que estamos a viver passa-se um bocadinho igual. Sim, as nossas empresas têm uma grande capacidade de iniciativa e de reinvenção. Mas também têm uma grande capacidade de solidariedade, de olhar para os outros e de apoiar quando é preciso. Porque num período difícil se reinventam para oferecer milhares de viseiras e de máscaras. É importante dizer outra coisa. Quando uma empresa faz os moldes para fabricar uma viseira, teve a colaboração de muitos dos seus fornecedores. Houve quem desse o plástico, houve fornecedores que ofereceram outas peças. Muitas empresas participam nestes projectos graciosamente e nem sequer aparecem. O facto de termos um tecido empresarial de pequenas e médias empresas, cujos donos são também trabalhadores, aproxima-as da socie dadedade e cria laços que nestas alturas se vêem desta forma.

Agora, mais do que nunca, a união faz a força…
A Nerlei é apenas uma peça da engrenagem. Nestas alturas, o voluntarismo de todos nós faz multiplicar medidas, o que é bom. Unida, a região terá muito mais força. Por isso, com algumas entidades, estamos já a ver o que podemos fazer após a pandemia para que a retoma seja mais rápida e a região possa dar uma resposta mais forte e mais unida. Também é hora de exigir do Governo medidas mais abrangentes e simplificadas, e a Nerlei temno feito, nos órgãos e locais próprios. É igualmente hora de trabalhar com as autarquias, Politécnico de Leiria e associações empresariais, na procura de soluções locais que nos ajudem no imediato, mas quiçá, sejam agentes transformadores do que iremos ser no futuro.

O Governo não tem atendido aos pedidos dos empresários?
O Governo tem sido muito célere a exigir dos outros, mas menos a cumprir a sua parte. Temos tido vários associados a queixar-se do atraso no reembolso do IVA, por exemplo. É inaceitável. O dinheiro é das empresas. Há outras coisas que o governo pode fazer. Numa reunião da CIP em que participei houve muitas empresas que se queixaram que as Comissões de Coordenação (CCDR) não estavam a pagar. Nós com a CCDR Centro não temos problemas nenhuns. Todos os pedidos de reembolso que fizemos foram pagos. Uma das preocupações que a Nerlei teve foi tentar ir buscar estes fundos, mas somos apenas organismo intermédio, os projectos são das empresas. Acreditamos que entre Março e Abril pagaremos às empresas um milhão de euros. É um valor significativo. É dinheiro delas, mas se calhar viria apenas em Julho ou Agosto. Fizemos um esforço junto da CCDR para acelerar os projectos em que estávamos envolvidos, a comissão foi sensível e pagou-nos. E nós agora estamos a pagar às empresas. Tudo isto para dizer que da parte do governo há coisas que podem ser feitas para ajudar as empresas.

Um inquérito feito pela Nerlei revelou que há bastantes empresas que se mantêm a funcionar, apesar das dificuldades…
Seria bom que os telejornais falassem menos da Covid em si e mais das empresas que estão a trabalhar. Centramo-nos muito nos médicos, enfermeiros, bombeiros e lares, que obviamente estão a passar um mau bocado, mas há um conjunto de outras entidades que estão a trabalhar. Continuamos a ter de comer, de ir às compras. Também as empresas de informática tiveram, numa primeira fase, um papel importante, pelo esforço de colocar tanta gente em teletrabalho. Tal exigiu dos sistemas e de quem estava a fazer isso uma disponibilidade acrescida. O comunicado feito pela Nerlei na sequência do inquérito aos associados não desvaloriza o problema económico, que estamos a ter e vamos continuar a ter, mas mostra que há muitas empresas a trabalhar. Há muita gente que se está a esforçar e é importante passar esta mensagem. As empresas estão a fazer das tripas coração para manter os postos de trabalho e para estar a trabalhar. Mas claro que não estamos a desvalorizar a grave crise que estamos a atravessar. Sabemos que há mais pessoas em dificuldades, a pedir ajuda ao Banco Alimentar. Pessoas que nos merecem respeito. Mas temos de olhar também para os que estão a lutar com as armas que têm, que não são muitas, para manter as empresas a trabalhar. E são esses que vão ajudar a que a retoma seja mais rápida. Quanto menos empresas fecharem mais fácil vai ser a retoma.