Entrevista

Bilhota Xavier: “Ainda me atormenta ver pediatras a chorar na urgência, porque estão completamente esgotados”

10 set 2020 12:06

Esteve 31 anos no hospital de Santo André, em Leiria. Aposentou-se, mas deixa marcos inquestionáveis na qualidade do serviço de Pediatria

Bilhota Xavier esteve 31 anos no hospital de Santo André
Ricardo Graça

Leia aqui a segunda parte da entrevista

43 anos de serviço público. Como é deixar a Pediatria 31 anos depois?
Depois de três décadas no hospital de Leiria e um quarto de século como director de serviço de Pediatria não seria correcto se não dissesse que ainda existe um pensamento virado para aquilo que poderia ser o serviço de Pediatria e aquilo que era a política da qualidade e segurança e humanização do Centro Hospitalar de Leiria [CHL], que ajudei a incrementar. Sempre procurei uma evolução para o serviço, nomeadamente aquele que presta cuidados às crianças e aos pais, garantindo que os profissionais de saúde tenham uma compaixão mais vincada, porque devem estar sempre ao lado de quem está de algum modo fragilizado. Ainda estou na fase de cortar o cordão umbilical. Tenho uma vida preenchida. Vou continuar a estudar e esta é uma vantagem da aposentação: temos mais tempo para nós e para gerir melhor o tempo.

Quais os marcos conquistados no CHL que o deixam orgulhoso?
Fizemos muita coisa. As coisas nunca aconteceram sozinhas. Devemos falar mais no nós e não nos eus. Para as coisas acontecerem tem de ser com um conjunto de pessoas que estejam de algum modo imbuídas do mesmo tipo de vontade. O primeiro marco foi a criação do serviço de neonatologia. Essa foi uma mudança radical, da qual muito me orgulho. Os bebés passaram a morrer menos e a ter maior qualidade de vida. Aquilo que faz parte do nosso ADN não é só contribuir para a sobrevivência, mas para a qualidade de vida dessas crianças. Diminuímos claramente o número de crianças que ficaram com paralisia cerebral ou alterações do seu desenvolvimento psicomotor, por exemplo.

O que o fez trocar o Pediátrico de Coimbra pelo hospital velho de Leiria?
O novo hospital já estava adjudicado. Eu e mais outros três pediatras que estavam comigo em Coimbra constituímos uma equipa, que decidiu de imediato construir um serviço de Pediatria com alguma qualidade. Hoje pode parecer estranho, mas fomos os quatro que começámos a garantir o apoio às crianças 24 sobre 24 horas. Foi uma decisão um bocado louca, porque prejudicámos muito a nossa vida pessoal e familiar. Os colegas que trabalham com os partos começaram a aperceber-se que quando nascia um bebé prematuro tínhamos uma formação da nova geração de pediatras diferente, com um espírito de missão. Aos poucos fomos melhorando as condições daquilo a que se chamava de serviço de Pediatria. Havia muitas carências de espaço e de conforto e praticamente não havia equipamentos para monitorizar as crianças. Começámos a formar enfermeiros para trabalhar na área da neonatologia e depois é uma mancha de óleo. Criámos uma estrutura dentro do serviço de Pediatria que garantiu que as pessoas continuassem a gostar de aprender, tivessem sentido crítico, fossem disciplinados e tivessem pensamento lógico. Em Medicina é muito importante ter um pensamento lógico, porque as grandes falhas na Medicina não têm a ver com o não saber, mas com a falta de organização e disciplina.

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