Entrevista

Boaventura de Sousa Santos: "As sociedades que participaram no colonialismo nunca se libertaram dos preconceitos raciais"

3 jan 2022 20:45

Sociólogo afirma que em Portugal existe racismo estrutural. "Existe tanto no Estado como fora dele, e é muito perigoso"

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Scarlett Rocha
Raquel de Sousa Silva

Defende que temos de pensar em alternativas económicas, sociais, políticas e culturais que, no seu conjunto, nos apontam para novos modelos civilizacionais. Que modelos são estes?

Alguns já não são novos, estavam na calha. É o exemplo da transição energética, que teve de ser acelerada, exactamente porque há consciência que esta crise sanitária tem muito a ver com a crise ecológica, sobretudo com as alterações climáticas. A transição energética tem de ser aprofundada, porque cada vez mais temos de assentar a nossa mobilidade em transportes colectivos. Não faz sentido uma transição energética que numa família de classe média alta resulta em três carros eléctricos, em vez de três a gasolina. Os eléctricos têm uma bateria que é feita com lítio, que continuará a ser explorado. Outra transformação é a que se prende com a relação cidade/campo. Vivemos em sociedades que criaram a ideia de que a cidade é progresso e o campo é atraso. Portugal, sendo tão pequeno, foi um dos países onde isso ocorreu, de maneira brutal. Mas quando veio a pandemia, muitos que podiam refugiaram-se no campo, onde estavam protegidos. Sou exemplo disso, estou desde Março de 2020 na minha aldeia [Quintela] a 30 quilómetros de Coimbra. O campo não é de maneira nenhuma atraso. Devemos privilegiar as pequenas cidades, as aldeias, tê-las equipadas com internet. Viu-se durante a pandemia que quanto maior a cidade pior a incidência da doença. As cidades foram os grandes centros de difusão da pandemia e da mortalidade. Penso que a relação cidade/campo se vai alterar. Penso também que se vai olhar com mais atenção para os centros comerciais e para as grandes superfícies.

 

Porquê?

Em alguns países, como nos Estados Unidos e no Brasil, têm dimensões de cidade, com o ar confinado. Pode-se lá passar o dia todo, são zonas de risco, por isso tiveram de ser fechadas [durante a pandemia]. Isto vai obrigar à criação de mais comércio de proximidade. E mesmo as grandes cadeias têm de ter mais instalações, de tamanho mais pequeno, para não haver tanta aglomeração de pessoas. Muitos sempre lutaram para que não se destruísse o pequeno comércio existente nas cidades. Outra coisa que a pandemia veio mostrar é que o investimento na saúde pública é um grande investimento. Quando a pandemia chegou a Portugal, o sector privado de saúde desapareceu, não quis tratar. O serviço público estava um pouco enfraquecido mas tem feito um trabalho notável. É preciso fortalecê-lo. A pandemia pode ser uma oportunidade. Pode ou não ser aproveitada. Mas hoje, em geral, a classe política não está muito virada para pensar a longo prazo. E esse é que é o problema.

 

Este modelo económico assente no crescimento e no consumo ilimitados não é sustentável…

Não é. Uma das mudanças que já está no terreno é a luta contra aquilo a que chamamos obsolescência programada. Por que é que os objectos duram tão pouco e quando se estragam têm de ser substituídos? Estraga-se o frigorífico e fica mais barato substituí-lo do que consertá-lo. Isto tem de acabar. A União Europeia está agora a desenvolver o princípio do direito à reparação. Aquela foi uma política das empresas para que as pessoas estivessem muito dependentes do mercado. Há moda para quatro estações e está-se a verificar uma obsolescência do vestuário que leva a uma sobrecarga enorme da natureza. Os carros podiam durar 20 anos. Mas duram em média cinco. E desvalorizam com o tempo, quando antes só desvalorizavam com o uso. Hoje podemos ter um carro novo em folha, que não saiu da garagem durante cinco anos, mas desvalorizou. É absurdo.

 

Mas uma mudança de paradigma obrigaria as empresas a não olharem para a sua actividade meramente como geradora de lucros, mas também como geradora de bem-estar social…

A empresa capitalista não tem essa preocupação. Quando se fala de responsabilidade social das empresas normalmente é relações públicas. O empresário, legitimamente, quer maximizar o seu lucro. Tem de haver regulação que o impeça de fazer isso. Por isso é que se criou o Estado, políticas sociais e tributação. O neo-liberalismo, modelo assente no livre comércio, na privatização, no encolhimento do Estado e no privilégio dos mercados, continua a dominar, mas está numa crise tremenda. A pandemia veio mostrar que não foi o sector privado que nos defendeu. Ninguém recorreu aos mercados para se defender, recorreu-se ao Estado. Por isso, outra mudança que prevejo que vai ter lugar é que, quer à direita quer à esquerda, ninguém vai pedir um Estado mais pequeno. Podem dizê-lo, por razões eleitorais, mas não o vão fazer. Os cidadãos querem protecção e para isso é preciso um Estado que esteja minimamente a funcionar. E áreas como a Saúde e a Educação não podem ser totalmente privatizadas, isso seria um absurdo.

 

Falou já na necessidade de se olhar para o campo com outros olhos, até porque a desertificação é um problema em Portugal. O interior pode ser uma alternativa para as pessoas que mal sobrevivem nas grandes cidades?

Sem dúvida. Sempre pensei assim. Num país pequeno como o nosso não faz sentido nenhum que grande parte da população esteja numa faixa de 50 quilómetros junto à costa. Houve realmente uma desertificação muito grande e parece-me que a pandemia veio mostrar que a regionalização é fundamental. Viu-se o papel que os municípios tiveram na luta contar a pandemia. O grande problema da regionalização é descentralizar as funções mas não descentralizar o dinheiro. Se não se descentralizar o orçamento, não vamos ter grande ganho.

 

Combate-se a força gravitacional de Lisboa e do Porto com a actuação de agentes locais ou com políticas do governo central?

Tem obviamente de haver políticas do governo, porque não se podem regionalizar algumas tarefas que são do Estado. Temos agora aí o PRR, mas admito alguma preocupação, porque a informação que vamos tendo é que grande parte dos investimentos vão ser feitos em Lisboa e à volta. Espero que isto não se concretize. Devia haver uma distribuição mais equitativa, também para o interior, com a criação de inovação que permita a fixação com qualidade de vida. Não faz sentido que os estrangeiros continuem a vir para Portugal à procura das boas condições no campo e que nós expulsemos os nossos jovens do campo para as cida

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