Entrevista

Entrevista | Ricardo Araújo Pereira: "Quando dois comediantes são casados, não vai dar bom resultado, porque é preciso um adulto na casa"

16 nov 2018 00:00

Sobre o poder, a timidez, a infelicidade e a recusa dos humoristas em participar no mundo dos crescidos.

O humor é o que há de mais parecido com a felicidade? 
A manifestação do riso parece, apenas porque nos momentos de felicidade a gente também ri. Por exemplo, os jogadores de futebol, marcam um golo e riem, mas não é o riso que me pagam para produzir. Essa é uma diferença importante. O riso que me pagam para produzir não tem a ver com felicidade, antes pelo contrário. Muitas vezes tem a ver com coisas infelizes, tem a ver, normalmente, com o que está mal, com o que é errado, com o que é infeliz. Há aquelas pessoas que dizem: "Só te ris do mal". É uma boa observação. Realmente, a gente só se ri do mal. E isso tem um valor, acho eu. Não há comédias sobre pessoas boazinhas. O Molière escreveu várias: sobre um misantropo, um hipocondríaco, um tipo que tem a mania das grandezas... As pessoas que não têm defeitos não têm graça, não é disso que a gente ri. Eu acho que há um valor em rir do mal, da infelicidade. 

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É apaziguador? 
É apaziguador, sim, se calhar torna as coisas menos pesadas. Não acredito que faça dissipar a infelicidade, mas, repare, este livro chama-se Estar Vivo Aleijamuito por causa de uma frase do Manuel da Fonseca que é "Isto de estar vivo ainda um dia acaba mal". E essa frase, que aliás exprime uma verdade incontestável, exprime-a de uma maneira que dá vontade de rir. Essa verdade incontestável de repente torna-se mais suportável. 

Já o vemos na televisão há muitos anos, mas nunca consegui perceber se o Ricardo se sente à vontade com as câmaras. 
Pois. Eu não sou uma pessoa da televisão, no sentido em que, por exemplo, o José Carlos Malato é uma pessoa da televisão. Ou o Herman. Aquilo é a vocação dele. Para mim nunca foi natural, antes pelo contrário. A nossa profissão é uma profissão de bastidores. O que eu faço continua a ser escrever textos humorísticos para pessoas. Neste caso, passou a ser para mim. 

Já se adaptou? 
Uma pessoa vai-se habituando. Por exemplo, hoje, aqui [apresentação na livraria Arquivo, na noite de 8 de Novembro], isto continua a ser bastante assustador para mim. Até há gente lá fora. É uma coisa simultaneamente assustadora e lisonjeira. Estou sempre fora de água. 

É aquele clichê do humorista tímido? 
Há uma razão para os clichês serem clichês. Em princípio é porque registam um padrão. É possível que haja esse padrão. Parece-me que se a gente for ver caso a caso, vários dirão que são pessoas tímidas, que isto é uma forma até de exorcizar essa timidez. 

E é por isso que não dança em casamentos? 
Reparou, também? Quando fui filmar isso [Episódio 1 de A Cave do Markl, no YouTube], o Markl disse: "Já viste isto?" E era uma fotografia de uma notícia de uma revista que dizia "Nuno Markl e Ricardo Araújo Pereira não dançaram no casamento de Vasco Palmeirim". E isso realmente não é notícia porque eu nem no meu próprio casamento dancei. 

Falta de jeito? 
As minhas pernas medem para aí 1 metro e 20 cada uma, é muito difícil controlar isto, manobrar isto de uma maneira harmoniosa. 

Em que momentos é que o humor não o salvou do desconforto? 
Isto de a gente dizer que o humor oferece essa espécie de salvação... quando não salva de nada, morremos na mesma. O mal continua, ele torna-se um bocadinho mais fácil de suportar. Às vezes, no momento em que as coisas acontecem, a gente não tem a presença de espírito suficiente para se destacar de si próprio e as ver de outra maneira. Se as coisas forem tão avassaladoras que não permitem essa distância. 

A ideia que temos do lado de cá é a de alguém que está sempre bem-disposto. E obviamente não será assim. 
Muito provavelmente há dois mitos e nenhum corresponde bem à verdade. Esse é o primeiro: tomar aquilo que o humorista faz no palco pela sua natureza. Realmente as pessoas não são continuamente bem dispostas em casa. Por outro lado, gerou-se também outro mito que é "Eh pá, eles suicidam-se muito". Talvez também seja abusivo fazer essa conclusão. Não me parece que os humoristas se suicidem mais do que outras classes profissionais. Se calhar, os dentistas suicidam-se tanto como os humoristas, o que acontece é que a gente não repara tanto. Mas continuamos a ficar impressionados por o Robin Williams dar um tiro na cabeça. 

A verdade está no meio? 
Sim. Talvez seja possível identificar um padrão em humoristas. Eu no outro dia estava a ver de seguida aquela série do Seinfeld, Comedians In Cars Getting Coffee, e, de facto, a gente chega ao fim daquilo e pensa: "Estes tipos são todos muito parecidos em certas características". 

Quais? 
É capaz de ter a ver com uma espécie de recusa de participar no mundo dos adultos. Eu identifico-me imenso com essa [característica]. Eu não pago uma conta em casa, não passo um cheque, não sei quanto dinheiro é que a gente tem no banco, nada. Por exemplo, quando dois comediantes são casados, aquilo não vai dar bom resultado, porque é preciso haver um ser humano normal, é preciso haver um adulto na casa. E essa recusa, mesmo que não seja exactamente a mesma origem, muitas vezes também tem uma origem comum, que é uma espécie de incapacidade de lidar com o que é difícil, uma espécie de infantilidade perene, que não se vai embora, que faz com que a gente continue a olhar para as coisas da maneira que não é aquela que se exige dos adult

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