Entrevista

Gonçalo Byrne: “As pessoas precisam de proximidade. A cidade não está em crise, pelo contrário”

18 jun 2020 13:25

Aos 79 anos é candidato à liderança da Ordem dos Arquitectos e defende que o urbanismo e o desenho de edifícios estão no início de uma era verde, que a Covid-19 vem acelerar

Gonçalo Byrne é natural de Alcobaça e frequentou o antigo liceu de Leiria
Ricardo Graça

Que respostas a arquitectura tem para um mundo condicionado por vírus?
Mal estaria o mundo se nós daqui para diante tivéssemos de viver sempre em confinamento. Esse cenário parece-me um pouco dantesco ou catastrófico. Por outro lado, as transformações das cidades e do habitar e das casas são processos lentos, não se transforma uma cidade de um dia para o outro nem de um ano para o outro. O que acho – e isso é mais importante – é que há uma mudança de mentalidade. Este confinamento forçado já está a ser muito mal tolerado, estamos a assistir a reacções violentas de desconfinamento. O que muda claramente é a percepção das pessoas em relação às limitações da pandemia. E as limitações são muito grandes e muito graves. As pessoas que são forçadas a viver em casa começam a descobrir coisas das próprias casas onde vivem, que no seu dia-a-dia não se tinham dado conta. Algumas coisas são boas e outras são más.

Será necessário repensar a organização das cidades?
Claro que sim. Mas esse pensar da organização das cidades – e até das próprias casas – é um movimento que já vem de trás e já vem claramente antes da pandemia. E podemos falar da importância dos arquitectos nessa mudança. Repare como, sobretudo a partir dos anos 90 e sobretudo a partir da Expo, que é o ano 98, a Expo de Lisboa, de repente as pessoas, mas não só, as próprias autarquias, os políticos, os governantes, um pouco por todo o lado, começaram a perceber como é importante as cidades disporem de espaços públicos vastos e qualificados. A influência da Expo 98 foi muito grande nesse aspecto. Percebeu-se que as cidades tinham potenciais que não estavam a ser usados e podiam melhorar imenso. E já nos anos 2000 surge o programa Polis. A Marinha Grande, por exemplo, tem uma requalificação de espaços públicos notável. Começa-se a desenvolver aí um movimento que vai crescendo cada vez mais. E obviamente esta qualificação do espaço público tem muito a ver com os projectistas dos quais os arquitectos estão no centro.

O próximo passo poderá ser um investimento maior em pequenos espaços verdes em zonas residenciais, em vez de grandes parques? Uma espécie de descentralização, desconcentração.
É uma questão de dispersão dos espaços verdes. Mas repare que por exemplo uma ciclovia é um espaço público muito importante que tanto pode atravessar a cidade como ir daí para fora. Tudo isso tem a ver com a forma de habitar. Um dos problemas do desconfinamento é que as pessoas ainda têm medo dos transportes públicos. Em Milão, quando começaram a abrir, perceberam que o número de bicicletas aumentou imenso. E houve uma adaptação, que se fez numa semana, porque se faz com uma pintura, que foi alargar as ciclovias em prejuízo dos corredores dos transportes públicos. Eu há pouco falava do longo tempo da cidade, mas há medidas de curtíssimo prazo que se podem também adoptar. Esta tendência que vinha de trás vai levar agora uma aceleração brutal. Mas não é por causa da Covid, é por outra razão, que também já vinha de trás, que é o facto de Portugal ter assinado o Acordo de Paris. Cria metas extremamente exigentes e rigorosas, por exemplo, até 2050 descarbonização total e a energia utilizada ser praticamente a 100 por cento energia renovável. Acabou de sair recentemente o documento que estrutura todas elas, que é o Acordo Verde [Green Deal] no Conselho Europeu. Quando se começa a esmiuçar todas estas estratégias vem-se por aqui abaixo e vai-se chegar à questão do espaço público, à questão da exigência de despoluir, de ter que interferir em tudo o que é transportes e mobilidades.

O modo como nos deslocamos entre cidades mas também dentro da cidade vai alterar-se.
Vai e fortemente. Mas esta transformação não é por causa da Covid, já vem de trás e vai ter de ser acelerada por razões políticas. O que é curioso é que vem ao encontro das descobertas, eu diria quase individuais, das pessoas. Há uma coincidência muito curiosa. Vem ao encontro de muitas das ambições das próprias pessoas depois do trauma da Covid. Esta vontade de sair de casa e ter um ar muito mais puro, sem poluição. Vai ter consequências enormes na construção.

Haverá uma pressão maior para reduzir a pegada ambiental dos edifícios e investir mais em construção sustentável?
Exactamente. Vai ter de ser. E por isso, na nossa candidatura [à Ordem dos Arquitectos] é um dos pontos mais fortes a necessidade, eu diria, de reciclar os próprios arquitectos e de [os] reeducar. Já há algum conhecimento mas vai ter de ser muito aprofundado porque vai ser um desafio muito grande. O mundo da construção é responsável por cerca de 40 por cento da produção de CO2, da pegada carbónica. Por trás da fabricação do cimento há emissões brutais de carbono. A demolição é um acto lesivo do ambiente. Cada vez mais se vai pender para reabilitar edifícios, reciclar materiais e mesmo na construção nova tentar evoluir para materiais com menor pegada ecológica.

Fala-se muito em Portugal na falta de qualidade térmica dos edifícios que habitamos e onde trabalhamos, mas imagino que na questão da qualidade do ar interior dos edifícios também há um caminho a percorrer.
E há muitos hábitos a mudar. A propósito da qualidade do ar, na altura do programa Parque Escolar estava em vigor uma norma [em] que era proibido abrir as janelas das salas de aulas. Tive dois casos de escolas em que bati o pé e disse: “não cumpro”. A norma dizia: “todos os espaços de aulas têm de ter ventilação mecânica”. É um absurdo total num País que tem uma estação intermédia que corresponde a metade do ano e que coincide com o ano lectivo, em que as condições térmicas se resolvem perfeitamente com uma ventilação natural transversal. Basta ter as janelas a abrir para não precisar de energia e condutas. Outra coisa que a Covid veio salientar: os prédios terem varandas generosas.

Espaços até de convívio com a vizinhança.
De socialização, mas também, para poder estar a apanhar sol. Que são fundamentais.

Concorda com programas de renda acessível, como estão agora a surgir, via alojamento local?
Sobretudo ao nível das autarquias principais, em Lisboa e no Porto, programas maciços que implicam investimento público mas também parcerias público-privadas, que no centro da Europa já se faziam há muitos anos e que em Portugal desapareceram. Com controlo de qualidade, com escolha de localização, muito deste programa de habitação acessível está a ser feito não em construção nova mas em reabilitação, o que é também bom porque os centros das cidades ficaram desertos. Um caso ainda hoje complicado é o centro histórico de Leiria, que é lindíssimo. Há uma entrevista muito interessante do ministro Matos Fernandes, publicada em Abril, em que ele anuncia os programas que resultam deste novo paradigma que vem da Europa. Estas medidas já estão a ser contempladas e parte dos fundos europeus vão ser investidos nisto. Não só para reabilitar o mundo da produção, mas [para] que a saída seja feita em condições que felizmente coincidem com o desejo das pessoas quando saírem da Covid, mas que, como digo, também já vinham de trás.

O teletrabalho e o ensino à distância podem acelerar o despovoamento dos centros urbanos e aumentar a pressão sobre as zonas rurais?
A crise de 2008, com o desemprego que gerou, teve um efeito muito curioso, além de ter aumentado a emigração, de gente jovem que resolveu voltar para o campo e até para sítios longínquos onde os pais tinham terrenos e tinham uma casa. E começar aí uma vida nova. É muito interessante o fenómeno porque essa vida nova tem uma sustentabilidade económica que é baseada no retorno, por exemplo, a uma produção agrícola, mas que não tem nada que ver com a produção agrícola dos pais e dos avós deles. O teletrabalho veio mostrar fundamentalmente que é possível mudar os hábitos do trabalho, dentro de certos limites. Não há nenhuma razão para que o sítio do trabalho seja no campo. As pessoas só não estão próximas do sítio onde trabalham porque as rendas são muito caras. Mas se não fossem caras não precisavam de viver no Montijo e trabalhar na baixa de Lisboa. Quero dizer que uma coisa é intensificar o teletrabalho, e a crise veio provar que o potencial do teletrabalho estava a ser sub-utilizado, outra coisa &eacut

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