O que é que a montanha tem de tão especial?
Estar na montanha é magnífico. É um sítio que, aos níveis que eu pratico, é bastante inacessível e toda a gente gosta de se sentir especial. O facto de sermos muito poucos a conseguir fazer isto leva-me a apreciar o que faço. As tarefas fáceis nunca me seduziram. É uma maneira de eu estar em constante crescimento como pessoa. É esta a minha forma de expressão. Se calhar, há outros que o fazem com um pincel e a tela. Eu quero sempre fazer mais e melhor na montanha. Com todas as dificuldades inerentes: altitude extrema, ar rarefeito e risco. Para consegui-lo tenho de treinar sempre mais, organizar-me melhor e ter mais experiência.
Há morte está presente no alpinismo e quem está fora pergunta-se porquê. Esta é uma modalidade individualista?
É um desporto colectivo, mas no dia do cume é a mais alta solidão. Tem mesmo de ser assim. Acima dos 7.500 ou 8.000 metros ninguém pode ficar dependente de alguém ou supor que se houver alguma coisa os outros podem socorrê-lo. Ali, tu mal consegues gerir o teu próprio organismo e carregares-te a ti próprio e a uma mochila, quanto mais trazer alguém por aí abaixo. Os alpinistas têm essa noção, mas muita da opinião pública não sabe. Então, fazem julgamentos que revelam ignorância.
O risco de vida está sempre presente.
Este é o verdadeiro desporto aventura, precisamente porque existe risco de vida. A aventura está em não sabermos o que está do outro lado da esquina, avança-se para o desconhecido sem controlar os factores e isso é de grande responsabilidade. É preciso ter consciência desse risco extraordinário e assumir se as coisas correrem mal.
Custa ouvir os comentários daqueles que não conhecem o alpinismo?
A sociedade actual tende a evoluir cada vez mais para o conforto e segurança e então há um choque de mentalidades. Quando as coisas correm bem dizem que os alpinistas são muito corajosos, quando correm mal, passam a ser uns loucos. Eu sei o que ando a fazer, é de grande responsabilidade e é por isso que me seduz. Se fossemos maluquinhos morríamos em três tempos. Na montanha não há cunhas, ela é implacável. Só atinge o topo quem se esforça. Quem não se esforça, não se treina e não faz o trabalho de casa convenientemente fica por lá. As pessoas não conseguem digerir isso.
Há possibilidade de haver solidariedade na montanha?
Há. Só que na prática, em certas condições, não há nada que se possa fazer. Não é por má vontade nem por egoísmo, é porque temos a consciência que não dá para fazer mais. É uma triste realidade, por vezes dizemos as coisas de forma crua, e quem arrisca a vida lá em cima compreende isso, só que são tomadas de decisão que chocam o grosso das pessoas.
O que aprendeu, com os problemas que já teve na montanha?
Estas aventuras, com momentos de crise ou de grande cansaço, são estímulos para, de repente, nos conhecermos um bocadinho melhor e sabermos onde estão os nossos verdadeiros limites. Nas outras modalidades, mal termina a prova, tem-se a assistência logo ali. Nós não temos. Só podemos contar connosco.
O que é que uma pessoa pensa quando está muito aflito e não tem ninguém para o ajudar?
Ai Jesus, o que é que eu estou aqui a fazer? É exactamente isto. Estamos sempre a maldizer, mas quando estamos longe, a cabeça está sempre a fervilhar de ideias para voltar para lá.
E não tem medo de morrer?
Claro que tenho! Se calhar temos mais traquejo, temos mais conhecimento de causa e damos uma margem de segurança que as pessoas não vêem. Por desconhecimento, pensam que andamos nos limites, mas não andamos. É graças a esse medo que conseguimos calibrar o bom senso para tomar as decisões acertadas. Quando estamos a subir uma montanha, estamos constantemente a reavaliar todas as situações e recursos. Se vemos que temos de voltar para trás, voltamos. Tenho mais medo que o cidadão comum.
É mais prevenido do que há 20 anos, quando começou?
Claro. Já vi muita desgraça, muita porcaria.
Nesses momentos da mais alta solidão, como diz no seu livro, sente Deus de alguma forma?
Toda a gente acaba por sentir Deus dentro de si próprio, qualquer que seja a sua religião. Se na montanha se sente mais, acho que sim. Nós aqui vivemos repletos de ocupações: o telefone não pára de tocar, os e-mails estão sempre a chegar, há distracções por todo o lado. Se na montanha encontramos paz de espírito para estarmos focados no que estamos a fazer, porque isso é muito importante – é o que depende do ir e vir ou do ir e não regressar -, se isso significa estar mais próximo do meu Deus, daquilo que busco da vida, então sim.
Há pouco raciocínio lógico lá em cima.
Depende de indivíduo para indivíduo mas, pela minha experiência, depois de 24 horas acima dos 8.000 metros já se começa a entrar numa hipoxia a nível cerebral, que faz com que não se tenha o mesmo raciocínio do que cá em baixo. O que não quer dizer que a experiência de muitas expedições – e eu fiz 18 acima dos 8.000 metros – não nos dê bagagem para ultrapassar os problemas. Por exemplo, se o Sol está a subir, eu posso subir. Se o Sol está a descer, eu tenho de voltar. Há coisas que surgem de forma mecânica.
Utilizar oxigénio artificial é desvirtuar o alpinismo?
É uma aldrabice. O verdadeiro alpinista é um indivíduo que se quer superar a si próprio, logo não faz sentido estar a utilizar carregadores de altitude nem oxigénio artificial. É tão falso como a Rosa Mota fazer metade da maratona de bicicleta.
Chegar ao topo é alívio ou alegria?
Nem uma coisa nem outra. O alívio só aparece quando chegamos sãos e salvos cá em baixo. Quando estou lá em cima ainda vou a meio da maratona. Falta a outra metade. A alegria surge mais tarde e estou a vivê-la agora. Depois deste projecto, que ocupou 17 anos da minha vida, é que estou a perceber o que fiz, através dos comentários, da correspondência e das solicitações que recebo. Faz bem ao ego e encoraja-me a continuar.
Depois das 14 montanhas conquistadas, o que se segue?
Vou continuar a fazer o que faço. Há uma série de possibilidades que tenho em mente e vou ver qual me agrada mais. Quero fazer várias outras montanhas em zonas do Nepal e do Paquistão que tenham muito menos turismo. Antes, os alpinistas eram conhecidos como os conquistadores do inútil. Hoje, com a quantidade de pessoas que vão a determinadas zonas, já se leva alguma riqueza e favorecemos a economia local. Há uma obrigação do alpinista do presente e do futuro de favorecer outras regiões.
O apoio de marcas conceituadas foi decisivo para continuar a fazer o que gosta…
Esta coisa dos patrocínios, que me leva a ouvir alguns comentários desagradáveis, é uma ‘sorte’ de muitos anos de trabalho. Só a partir de 2003 é que me apercebi que se queria passar da paixão ao profissionalismo era preciso dar a cara e apostar na televisão como media partner. Só quando organizámos algumas expedições com portugueses é que começámos a ter alguns patrocínios, mas que cobriam, cada um, 15 a 20%. Havia sempre a outra metade que tínhamos de ser nós a comparticipar. Para essas empresas eram autênticos negócios. Davam peanuts e nós oferecíamos um multiplicador 30 ou 40, com notícias em pleno telejornal, com um milhão de portugueses a ver. Comecei a perceber onde estava o segredo deste negócio, que de patrocínio não tem nada, são permutas publicitárias. Esse esforço financeiro que fiz foi essencial para ganhar visibilidade e boa conotação junto dos potenciais patrocinadores para depois ser premiado com o patrocínio do Millenium, que viu em mim um veículo maduro e credível.
O que lhe permite viver inteiramente do alpinismo…
Neste momento sou um desportista profissional, tenho boas condições de trabalho. Costumo dizer que passei, basicamente, por três fases. Antes do Evereste, depois do Evereste – que continuou tão mal ou pior, porque se antes era um ilustre desconhecido, depois fiquei com a conotação de uma pessoa que ficou conhecido pela desgraça. Actualmente vivo na terceira fase.
São os patrocinadores que lhe dizem quais os desafios a seguir?
Neste projecto tive de encontrar um equilíbrio saudável entre aquilo que gostava fazer e o que o patrocinador desejava. Não queria demasiados riscos, mas queria sucessos. Ou seja, isto é um projecto de sonho, mas com muita concessão. Agora, acho que conquistei o direito de escolher o que vou fazer. Há montanhas que nem nomes têm, onde ninguém foi. Posso deixar o meu cunho pessoal.
A família não se queixa do tempo que passa ausente?
Já passei mais tempo fora. Durante os oito anos em que organizei viagens passava mais de seis meses fora. E, claro, não havia mulher que me aturasse, não havia possibilidade alguma. Neste momento, passo bastante mais tempo em Portugal, também para ter um bocadinho de felicidade do lado de cá, poder viver junto com alguém e, no mínimo, corresponder às expectativas. Se bem que essas pessoas já me conheceram assim e o passarinho sempre foi livre, se o metem numa gaiola vai ficar muito infeliz.
“Escalar montanhas é a empresa da minha vida”
Gosta de vídeo e fotografia, mas vibra é a falar das energias renováveis. Lamenta que a maioria das expedições continue a usar geradores. Ele, optou pelos painéis solares. Propõe as bicicletas – eléctricas ou não – para resolver os problemas do trânsito e ajudar a um ambiente mais saudável, mas, em Portugal, não vê as mentalidades a evoluírem nessa matéria. João Garcia iniciou-se aos 16 anos em escalada em rocha com o Clube de Montanhismo da Guarda, na Serra da Estrela. Completa 43 anos no próximo dia 11 de Junho e fica na história como o primeiro português e décimo mundial a ascender às 14 montanhas com mais de 8000 metros existentes no planeta sem o auxílio de oxigénio artificial. A chegada ao cume do Evereste, em 1999, revelou-se trágica. O colega e amigo Pascal Debrouwer caiu numa ravina durante a descida e morreu. Ao alpinista português valeu o internamento num hospital de Saragoça, em Espanha, onde lhe amputaram alguns dedos das mãos e pés, e onde recebeu um implante para o seu nariz devido às queimaduras provocadas pelo gelo. João Garcia é também autor dos livros “A Mais Alta Solidão”, “Mais Além – Depois do Evereste” e “10 Passos Para Chegar ao Topo”, este em parceria com o empresário Rui Nabeiro.
Ainda tem muitos desafios que quer superar?
Tenho 42 anos. O relógio biológico de um atleta desta modalidade está limitado até aos 45/48 anos. De maneira que sei que tenho mais uns quatro anos de vida útil em alto nível. Depois, inevitavelmente vou ter de começar a descer a montanha da minha vida. Não vou parar nem me dedicar à pesca, mas vou com certeza voltar a escaladas mais fáceis e, se aos 70 anos conseguir atravessar Monsanto com os filhos ou os netos nas mãos, já será uma grande felicidade. Preenchi toda a minha vida a fazer uma coisa que faço com paixão.
Os portugueses olharam todos para o mar. O João olhou para a montanha…
Damos mais valor àquilo que não temos. Aos nascer em Portugal, no Verão, é praia, praia e mais praia. Sempre fui um irreverente, nunca me conformei. Temos mar e eu fui à procura do contrário. Há pessoas que se acomodam. Há malta da minha geração que ainda vai, sempre que tem tempo livre, para a praia. Eu faço uns dois dias de praia por ano e é porque estão lá pessoas com quem preciso de falar. Ainda por cima, com o mal provado que faz, é tão estúpido ficar na areia o dia todo a torrar como continuar a fumar.
Como é que reage ao facto de as pessoas o reconhecerem?
Tenho vindo a habituar-me, a pouco e pouco. Não foi uma coisa que aconteceu de um dia para o outro. As pessoas recordam que o João Garcia, volta e meia, faz uma coisa. Este está a ser mais um ciclo com alguma exposição mediática, mas felizmente as pessoas têm boa impressão do que faço. Dão-me os parabéns, desejam-me boa sorte, agradecem-me por levar a bandeira tão alto e perguntam qual é o próximo desafio. Agora, esse reconhecimento não é algo que me intimide, nem que necessite.
Os nepaleses são-lhe muitos caros. O que têm eles de especial?
Têm um sorriso sincero e não sabem o que é o cinismo. São simples e conseguem-nos provar que é nessa simplicidade que está o caminho para se atingir a felicidade. No mundo ocidental entramos nesta coisa do consumismo, queremos mais e mais, e quando damos por nós temos muita porcaria, mas perguntamos, somos felizes? Será que estou a fazer aquilo que gosto? Depois, acabamos por entrar em ciclos viciosos e ficamos prisioneiros das prestações do carro e da casa. Quando viajamos para esses países apercebemo-nos da essência da vida. Já estive 32 vezes no Nepal. Se continuo a voltar não é só pelas montanhas, é também pelas pessoas, porque estas expedições não são aventuras do alpinista com a montanha, são aventuras humanas.
Os 14 picos de João Garcia
1993: Cho Oyo (8201 m)
1994: Dhaulagiri (8167 m)
1999: Monte Evereste (8848 m)
2001: Gasherbrum II (8035 m)
2004: Gasherbrum I (8068 m)
2005: Lhotse (8516 m)
2006: Kanchenjunga (8586 m)
2006: Shishapangma (8046 m)
2007: K2 (8611 m)
2008: Makalu (8463 m)
2008: Broad Peak (8047m)
2009: Manaslu (8163m)
2009: Nanga Parbat (8125m)
2010: Annapurna (8091m)