Entrevista

Lena d´Água: "Dá-me ideia que gastei as pilhas da paixão"

5 nov 2020 09:36

A cantora actuou recentemente na Casa da Cultura – Teatro Stephens da Marinha Grande. Em entrevista, exorta o público a libertar-se do medo e, em segurança, a desfrutar das artes

Lena d'Água
Ricardo Graça
Daniela Franco Sousa

Trinta anos depois há um novo disco de originais que relança Lena d'Água para a ribalta. Ainda achava que era possível?
Claro, estava só à espera de um compositor que me servisse como uma luva, como é o caso do Pedro da Silva Martins. Não sou compositora e durante aqueles anos em que fiz muitos êxitos, com canções que duram até hoje, era o Luís Pedro Fonseca que escrevia para mim. Conhecia-me como a palma da sua mão. Mas depois do Luís Pedro nunca mais tive ninguém. Eu segui a minha vida. Ele seguiu a dele. E entretanto seguiu para outro plano e já não está entre nós. Mas eu continuava a acreditar. Também se pode fazer um disco com autores variados, ir buscar uma música aqui e outra acolá. Mas não é a mesma coisa.

Valeu a pena esperar.
Estas canções vieram trazer-me uma grande alegria. Uma grande satisfação.

Como se explica esta paixão das gerações mais novas pela Lena d'Água?
As canções são muito boas. E quando os mais jovens começaram a crescer e a interessar-se pela música, quando foram procurar coisas antigas do tempo dos seus pais e dos seus avós, descobriram um espólio riquíssimo. Lá está, o Luís Pedro era um criador genial, que escreveu canções que ficaram até hoje, que ficaram na memória das pessoas. São coisas que ficam e que marcam muito várias gerações. E os miúdos ficaram encantados. Primeiro foi o Ciclo Preparatório que me veio convidar para gravar no disco deles, com a Volta ao Mundo com a Lena d'Água, Os Capitães da Areia, e mais recentemente foram eles, They're Heading West e o Benjamim e o próprio Pedro da Silva Martins. Convidaram- me para cantar com eles, e pronto, ficou feito o grupo de trabalho, que em pouco mais de dois anos cuidou das canções que o Pedro escreveu. É um belo trabalho de grupo, onde os músicos não são apenas executantes. Todos participaram nos arranjos. Além disso, fizemos acontecer um trabalho sem editora a patrocinar. Foi mesmo um trabalho de grande empenho e carinho, que surgiu sem termos dinheiro. Foi um trabalho de grupo, que levou o seu tempo, mas cujo resultado é este que todos vemos.

A aclamação da crítica só chegou ao fim de longos anos de trabalho. Foi a Lena d'Água que mudou ou foi o olhar da crítica?
Eu não mudei, a crítica é que se renovou. Já não estão nos poleiros aqueles Velhos do Restelo, que antigamente não me davam destaque. Nem a mim nem ao Luís Pedro. Nunca fomos acarinhados pela crítica durante aqueles anos todos. Os críticos agora são mais jovens. Além disso, está aqui um trabalho incrível. Se não surgisse, ia continuando a fazer as minhas coisas, os meus duetos de guitarra e voz ou de piano e voz, o que fui fazendo sempre ao longo dos anos, mesmo sem originais. Mas fazia-me falta, fazia-me pena não renovar o repertório. Mas se não tinha, não tinha. Nunca entrei em desespero e sempre acreditei que um dia a coisa ia acontecer.

O que ganhou a Lena d'Água com o passar dos anos?
Eu continuo a ser um bocado estapafúrdia, como quando era mais nova. Continuo a cometer erros, continuo a perder a paciência sem necessidade, a fazer tempestades em copos de água. Infelizmente, cá por dentro, há coisas que gostava de ter melhorado, mas que continuam a acontecer-me. Sou um bocado abrutalhada. Passado meia hora já passou. Mas, por vezes, pelo caminho vou magoando algumas pessoas. E assustando: 'ai coitada, ela está doida!'. Mas não. Dá-me forte e passa-me num instante. O corpo vai perdendo beleza e juventude. Mas cá por dentro não somos muito diferentes do que éramos quando tínhamos 20 ou 30 anos. A sociedade não aceita o passar dos anos. Não aceita sobretudo nas mulheres. Mas tem de aceitar, porque dentro de pouco tempo a maior parte de nós vai ter mais de 60 anos. Não há bebés e as pessoas têm vidas cada vez mais longas... E é a vida. Há que manter o foco no interior da pessoa, em vez de estarmos preocupados com o espelho. Há dias em que olho mais ou menos para o espelho, e há outros dias em que não quero olhar. Devemos preocupar- nos menos com o espelho e mais com o interior, com o que sentimos.

Onde se encontra o amor depois dos 60?
Está nos meus animais, na minha filha, no meu neto, na minha família. Não tenho namorado há muitos anos. Não vejo nada que me apeteça. Já tive uma data de amores e de paixões ao longo da vida. Dá-me ideia que gastei as pilhas da paixão. A última vez que me separei da pessoa com quem vivia foi há 20 anos. Estou bem como estou. Não tenho ciúmes, não tenho inquietações, não tenho de prestar nem de pedir justificações. E não tenho inseguranças. Tudo isso já foi. Tenho os meus quatro cães, tenho os meus gatos e moro sozinha numa aldeia muito sossegada.

Decidiu há muitos anos Hipocampo e trocar Lisboa pelo Bombarral. Quis fugir de alguma coisa ou quis encontrar- se?
Não fugia de nada. Só não tinha dinheiro para pagar uma casa como deve ser em Lisboa. Quando os nossos pais morreram e vendemos a nossa casa de Benfica, eu já tinha uma cadela e já tinha gatos. E para ter uma casa minimamente porreira onde pudesse viver com os animais, não podia escolher um pequeno apartamento. E em Lisboa não tinha dinheiro para uma coisa maior. Então, procurei uma casa que pudesse pagar com o dinheiro que tinha. E como já tinha nessa altura 50 anos, estava fora de questão meter-me em empréstimos. Além disso, desde miúda tinha a ideia de viver no campo. Juntou-se o útil ao agradável, que é o silêncio, o sossego de viver numa pequena moradia. Já nem penso em voltar para Lisboa.

Que memórias tem da Marinha Grande?
No tempo do Salada de Frutas, no pavilhão da Embra – lembro-me daquilo ser gigante e de ter poucas pessoas a assistir, nem sei se umas 100 ou 200 – fomos lá estrear o Robot, ainda antes de o termos gravado. Ainda ninguém o conhecia, mas mal começámos a tocar vimos logo a reacção do pessoal, toda a gente a dançar e a repetir. Percebemos logo o êxito que ia ser. E foi.

Apesar do sucesso estrondoso de Desalmadamente, espectáculos como este voltaram a escassear, desta vez por culpa da pandemia. Como se estão a aguentar os artistas?
Ajudamo-nos uns aos outros. Nós vamos ter mais alguns espectáculos, a situação está agora mais controlada, mas foi torturante ficar estes seis ou sete meses em casa sem trabalhar. No meu caso, valeu-me a ajuda de amigos. Importa dizer que, desde que voltamos a actuar, todos os locais onde vamos têm apresentado as melhores condições. Toda a gente de máscara, alcool-gel sempre disponível, tudo mais limpo do que nunca, os lugares marcados e com distanciamento. Está tudo impecável. As pessoas têm de assistir a concertos. É claro que se tiverem uma doença que os coloque em risco, mais vale estar sossegado. Mas a maioria das pessoas pode ir, desde que respeite as regras de segurança. Eu teria medo se tivesse de ir de comboio ou de autocarro para ir trabalhar todos os dias. Mas salas de espectáculos?...

E que falta fazem as artes nos tempos que correm...
A música é para comer. A música é o alimento do espírito, tal como o cinema, o teatro, a dança, a pintura. Não vamos ficar só a papar noticiários que metem medo, que metem pavor. Também gosto de estar a par do que acontece. Mas não podemos ficar reféns do medo. Só temos uma vida para viver. Vamos ficar todos encolhidinhos? Use-

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