O branco do algodão continua a ser o seu espaço criativo de eleição?
Continua, mas agora também tenho o negro da grafite que entra nesse algodão, tenho pigmentos alaranjados ou a hematite, uma pedra moída até ser pó, que pinta e torna o desenho em pedra. Já não é só algodão, agora é pedra. Mas a base, continua a ser o algodão imaculado que recebe tudo, que é poroso, que é receptivo. É um ‘lugar de escuta’. Um lugar para ver e ouvir os outros e, cada vez mais, tem sido a coisa mais determinante para guiar a minha vida e trabalho. Temos de ver e ouvir os outros, deixando que nos afectem, que nos tragam as suas cores, as suas feridas e as suas alegrias. O algodão traz-me tudo isso.
Está presente um grande elemento de memória e de uma imagem da coisa construída. A própria imagem, esse retrato da construção, cria uma camada nova de memória no objecto?
Exactamente. O objectivo é esse. Quem vai ao meu atelier percebe-o muito bem. A minha produção acontece por esse olhar que se faz por camadas e as recolhas são faseadas no tempo. Quando regresso a uma superfície utilizada anteriormente, ela já tem mais histórias para contar. Agora, com o meu próprio uso, somado ao de outras pessoas, que não conheci, que cá estiveram e viveram este espaço antes de mim. Depois, no atelier, coloco essas camadas em cima umas das outras e começo a perceber as relações entre elas, as histórias que constroem quando dialogam. Interessa-me muito essa “interferência”, no melhor sentido da palavra, que nos torna mais ricos. Sentimos que fazemos parte de um território. O algodão continua a ser uma forma de criar um mapa do território à escala da minha vida. À escala real de 1/1. Toco um metro de chão e é esse metro que vai, como desenho, para a minha obra. É como se, de algum modo, sentisse que estou a construir uma cartografia que me acompanha, sempre em escala real. É um mapa que jamais estará completo, mesmo quando eu já cá não estiver. A obra poderá estar incompleta e poderá ser revisitada, remontada com outras camadas e é interessantíssimo pensar que viverá além de mim.
No seu trabalho, vemos não apenas territórios e os seus mapas, mas também bandeiras, como as que, no Verão, levou ao Brasil.
Em Setembro, na comemoração dos 200 anos da independência, no contexto do Grito do Ipiranga, a curadora que trabalhava no consulado de Portugal em São Paulo, no Brasil, tinha- -me proposto um diálogo com uma artista brasileira. Foi a junção das duas mulheres e dos dois olhares femininos sobre a ideia quase maternal de território, que intitulámos “Sábado”, pois o 7 de Setembro de 1822, foi nesse dia da semana. É uma referência a um outro tempo, que não correspondia ao do ano de 2022, e procurava perceber, todos estes anos, como sobrevivemos e nos relacionamos, pacificamente ou não, com o facto de, lá, sermos referenciados como “invasores” e “colonialistas”. Para os brasileiros, o colonialismo está muito inflamado, e o que lhes levei foi um projecto, cujo cerne eram três bandeiras feitas à escala. Na métrica, vi qual era a relação da proporção dos elementos e fiz a bandeira de Portugal, a do Brasil e a soma de ambas. Foi feita uma dupla costura para marcar o desenho a branco, com o escudo e com o círculo e todos os espaços determinantes. Fiz as três bandeiras a branco e depois usei o chão do meu atelier em Leiria - sou natural de Leiria e escolhi manter-me a viver aqui e esta questão autobiográfica estará sempre no meu trabalho -, para recolher essa ideia de território, em algodão misturado com argila em pó, para aludir às primeiras construções em taipa, que levámos para o Brasil. A exposição e a mensagem de bandeiras brancas foram muito bem recebidas e entendidas, com toda a ideia de pacificar em vez de acentuar as diferenças olhando para aquilo que nos une.
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