Sociedade

Reportagem na Zona Covid-19 dos cuidados intensivos do HSA

26 nov 2020 15:41

Nos cuidados intensivos luta-se para sobreviver. O coronavírus SARS-CoV-2 gosta de deitar abaixo os mais frágeis. Encontrar neles um espaço para atacar e destruir. Mas há quem o vença! A equipa da Medicina Intensiva do Hospital de Santo André pode estar exausta, mas a dedicação e o profissionalismo estão sempre lá.

Ricardo Graça
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Ricardo Graça
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Nos cuidados intensivos luta-se para sobreviver. O coronavírus SARS-CoV-2 gosta de deitar abaixo os mais frágeis.

Encontrar neles um espaço para atacar e destruir. Mas há quem o vença!

A equipa da Medicina Intensiva do Hospital de Santo André pode estar exausta, mas a dedicação e o profissionalismo estão sempre lá. 

“Não acredito em milagres, mas se os há, acontecem aqui todos os dias com muito sacrifício e trabalho.”

Luís Pereira, director do Serviço de Medicina Intensiva, é um homem sorridente, bem-disposto, com um humor refinado que faz esquecer o cenário de um local onde se luta pela sobrevivência dos pacientes.

Estas características são formas de desanuviar a pressão constante de quem lida com os doentes “mais graves, entre os mais graves”, e em risco de vida, nos cuidados intensivos do Hospital de Santo André (HSA), unidade do Centro Hospitalar de Leiria.

No último andar do HSA a luz natural invade todo o piso dos cuidados intensivos, agora dividido em doentes Covid, não Covid e cardíacos. A azáfama é constante.

Enfermeiros, médicos e auxiliares não param. Nesta unidade os doentes “descompensam facilmente”. Toda a atenção é pouca.

Os números

55

é o número total de camas nos cuidados intensivos que o hospital de Santo André pode disponibilizar, se accionar o nível 5 do seu plano de contingência. Actualmente, está em vigor o nível 3

6

é o número de médicos do quadro do hospital de Leiria, que conta ainda com a colaboração de prestadores de serviços externos. “Só que os colegas intensivistas de outros hospitais também estão saturados pelo trabalho nos seus hospitais”, constata Luís Pereira
 

4

é o máximo de horas que os profissionais de saúde podem ficar na área de isolamento dos cuidados intensivos restritos à Covid-19. O equipamento individual que vestem é de tal modo compactante, que se torna insuportável tê-lo vestido mais de quatro horas. O ideal são duas horas. Mais de quatro começa a provocar confusão mental, explica Luís Pereira

A área Covid é altamente restrita. Há doentes isolados em quartos (quatro), outros dividem uma sala com várias camas com o distanciamento necessário. Em comum têm o facto de todos estarem ligados a uma máquina.

Ventilados de forma invasiva ou não invasiva, o ritmo cardíaco, a pressão arterial, o nível de oxigénio, as funções renais, a medicação ou a alimentação por sonda são monitorizados a todo o instante.

Os doentes estão ladeados por fios e tubos, que contribuem para a sua sobrevivência. A panóplia de equipamentos é grande, mas sua actuação e as informações que fornecem são essenciais para a vida do paciente.

Depois de almoçar, Micael Inês, um dos enfermeiros dos cuidados intensivos, entrou para substituir uma das colegas que já estava a trabalhar na área isolada há, pelo menos, duas horas. Depois de toda a informação ser passada, Micael pergunta se alguém precisa de ajuda e faz uma ronda pelos doentes.

Em pouco tempo, resume ao JORNAL DE LEIRIA as principais funções dos equipamentos que estão ligados aos utentes. O ventilador faz com que os alvéolos funcionem para que as trocas gasosas se realizem e “permite oxigenar o sangue”. Há cateteres ligados aos pontos nevrálgicos do corpo, que transmitem informação sobre a pressão arterial.

O ritmo cardíaco aparece no monitor e as diferentes medicações estão em seringas, ligadas por sondas que injectam directamente no organismo. A saturação do oxigénio está sempre a ser medida através de um dispositivo colocado no dedo.

A gravidade da doença pode levar à falência de alguns órgãos. Os rins, por exemplo, deixam de funcionar, obrigando a que o utente esteja ligado a mais uma máquina para fazer diálise.

A maioria dos utentes está sedada, toma analgésicos e curare, um forte paralisante, utilizado pelos índios sul-americanos. A entubação invasiva é difícil de suportar. Os doentes têm de estar completamente “calmos, tranquilos” e imóveis. A alimentação por sonda ou intravenosa obriga também ao controlo da insulina, que é ajustada constantemente.

Cada toque no monitor, nos tubos ou no próprio doente para verificar a sua respiração, por exemplo, é imediatamente seguido pela desinfecção das mãos, mesmo que se usem dois pares de luvas. O gesto é automático e, numa ‘visita’ de 30 segundos junto à cama do paciente, o profissional de saúde pode desinfectar as mãos três ou quatro vezes.

Nas situações mais graves os doentes têm de ser virados de barriga para baixo, para respirar melhor, porque esta posição “comprime melhor os pulmões e melhora as trocas gasosas”, explica Micael Inês.

E não é fácil virar um utente que não se mexe. “São precisas cinco pessoas. Tivemos um doente americano, 29 anos, com 185 quilos. Virávamo-lo com uma cama ao lado da outra e eram precisas oito pessoas. Já teve alta”, acrescenta Luís Pereira, satisfeito com mais um caso de sucesso.

Na terça-feira, as dez camas destinadas aos doentes Covid em estado grave estavam preenchidas. Quando a reportagem do JORNAL DE LEIRIA se encontrava no local, o décimo utente entrou com necessidade de ventilação. Quando chega um doente infectado, todo o circuito é completamente fechado. As portas dos gabinetes estão trancadas e ninguém passa pelos corredores até tudo estar desinfectado. Os profissionais de saúde têm áreas de circulação alternativas. Basta seguir a linha preta...

Nos cuidados intensivos estão homens e mulheres com idades entre os 49 e os 82 anos. Dois vieram transferidos de Bragança e Matosinhos. “Estamos a ser solidários com o Norte. Dois doentes são de Caldas da Rainha, que habitualmente drenava para o Hospital de Santa Maria, mas também está cheio”, revela o especialista.

Numa sala completamente isolada, os dez doentes são monitorizados, quase ininterruptamente, por uma equipa de médicos e enfermeiros, que tem de sair do local a cada duas horas. “Não é possível estarem lá dentro mais de quatro horas, com todo aquele equipamento vestido. Até se começam a sentir sinais de confusão mental”, revela Luís Pereira.

Aqui o vírus não entra

É fácil de perceber. Para entrar na área intensiva dos doentes Covid-19, há um ritual que é cumprido escrupulosamente a bem da segurança do profissional. Apenas com a roupa interior no corpo, começa-se por vestir umas calças e camisola de algodão. Em seguida, um fato de plástico, que cobre todo o corpo, incluindo a cabeça. Protectores de pés e pernas, luvas, máscara ‘bico de pato’, touca, óculos ou viseira e galochas garantem a protecção total. “Zero infecções. Não houve qualquer contaminação aqui”, orgulha-se Luís Pereira.

Sair da zona Covid também obedece a regras restritas. Todo o equipamento individual é deixado antes de passar para a zona ‘limpa’. Para despir, também há toda uma ordem: botas, fato, viseira, touca, luvas, máscara e protectores de pés. Cada retirada de peça de roupa é imediatamente intercalada com desinfectante nas mãos, tocando o mínimo possível nas zonas expostas. O banho é o ‘toque’ final da desinfecção.

“Há profissionais a tomar três a quatro banhos por dia. A pele já está desidratada”, constata Luís Pereira.

Todo este equipamento de protecção individual não é fácil de suportar. Calor, transpiração, óculos ou viseiras embaciadas, o peso das botas, a dificuldade em respirar em condições normais... tudo isto têm de suportar homens e mulheres que lutam pela vida de todos os doentes que ali chegam.

Luís Pereira não gosta que lhes chamem heróis e muito menos cobardes. “Somos profissionais de saúde, dedicados, e que tudo fazem pelos doentes. Sempre o fizemos”, assume. E a atenção extrema, o cuidado e até o carinho com que tratam os doentes é notório. Uma utente, que acaba de acordar, depois de ter estado sedada devido à ventilação, ouve a voz de uma profissional a explicar-lhe carinhosamente: “está nos cuidados intensivos do hospital de Leiria. Tem o coronavírus e veio para cá por ter uma pneumonia.”

“Antes da Covid isto era muito tranquilo. Com dez camas, fazíamos todo o tipo de assistência aos doentes. Recebia doentes de pósoperatórios complicados ou problemas do foro respiratório”, constata o director clínico.

Em Março, a vida nos cuidados intensivos mudou. A pandemia obrigou a uma reorganização dos serviços, que continuam a dar resposta aos doentes infectados pelo SARS-CoV-2, mas também a todos os outros, nomeadamente os cardíacos. A unidade começou por admitir doentes Covid nos quartos de isolamento. Esta segunda vaga aumentou significativamente a procura, pelo que as dez camas ficaram dedicadas a estes utentes.

“Fizemos a adaptação da antiga unidade cardíaca, com cinco camas, para receber os doentes não Covid. A unidade intermédia passou a receber os doentes cardíacos.”

Para responder ao novo coronavírus o número de camas tem sido suficiente. Já o número de doentes cardíacos, por vezes, excede a capacidade actual. “Alguns pós-operatórios fazem o recobro na Unidade Cuidados Pós-Anestésicos. A onda de Covid é tal que tínhamos uma unidade de cuidados agudos polivalentes, com 20 camas, agora só com doentes Covid. Tem dez doentes e dez vagas”, afiança Luís Pereira.

A afluência de utentes infectados com o novo coronavírus no HSA obrigou o hospital a transformar três enfermarias em área Covid. “Neste momento, estão 90 camas ocupadas, com doentes menos graves. Muitos deles a precisar apenas de oxigénio.” Todos os profissionais de saúde fazem turnos atrás de turnos e a exaustão começa a notar-se.

“A lei obriga a fazer uma urgência de 24 horas por semana, um sábado e um domingo. Os médicos estão sobrecarregados em todo o País. A maior parte faz dez turnos de 24 horas”, afirma o intensivista, revelando que no serviço dos cuidados intensivos do HSA existem seis médicos no quadro.

"Podemos ter muitos ventiladores, mas não têm piloto automático. Este equipamento implica ter médicos, enfermeiros e assistentes operacionais. A falta de médicos sempre foi um problema, mas agora agravou-se” 
Luís Pereira
 

Os rácios europeus apontam que exista um enfermeiro por cada duas camas e um médico por quatro camas. Isso significa que o serviço deveria ter 24 enfermeiros num período de 24 horas. “O problema é que não houve tanta contratação quanto isso. Tivemos de mobilizar enfermeiros de outras áreas que já tinham passado em cuidados intensivos”, afirma Luís Pereira.

A falta de recursos humanos é mais grave do que a falta de ventiladores, que, para já, não é um problema. “Podemos ter muitos ventiladores, mas não têm piloto automático. Este equipamento implica ter médicos, enfermeiros e assistentes operacionais. A falta de médicos sempre foi um problema, mas agora agravouse. Não é fácil ser médico intensivista, é uma carga e um stress emocional muito grande.”

O director de serviço critica ainda a remuneração dos assistentes operacionais dos cuidados intensivos. “É-lhes exigida uma grande formação para um ordenado que é pouco mais acima do salário mínimo.”

Viver e respirar nos cuidados intensivos obriga a uma grande capacidade de resiliência. Daí o humor constante de Luís Pereira, que prefere focar-se nas vitórias. Falar sobre a morte não é um tema que lhe agrade, pelo que, por várias vezes, desvia a conversa. Talvez porque a Covid também não lhe foi simpática e lhe ‘roubou’ um amigo de adolescência.

Depois de ter estado nos cuidados intensivos e de ter recuperado do novo coronavírus, o utente já estava negativo e foi já na enfermaria sofreu um AVC hemorrágico. Não resistiu.

Também não sabe quantos doentes morreram de Covid no seu serviço. “Fiz uma branca no meu cérebro. Vamos actualizar a estatística, mas não quis ainda intuir.” Esclarece que já morreram doentes na casa dos 60 anos, com outras patologias associadas, “mas a maioria são idosos”.

“Felizmente temos mais alegrias. Há algumas tristezas, sobretudo quando há muitas horas de investimento e uma carga de trabalho brutal num doente.” A alegria é muito festejada, sempre que um doente obtém a alta para ir para a enfermaria. “É uma grande felicidade”, diz, com os olhos a sorrir, já que a máscara lhe tapa a restante expressão facial. Um doente Covid fica, em média, pelo menos, duas semanas nos cuidados intensivos.

“Mais do que os habituais oito dias das outras patologias.” E são os fumadores e os pacientes com patologias respiratórias e de obesidade que mais risco têm de ir para os cuidados intensivos quando contraem o SARS-CoV-2.

O impacto dos doentes que acordam, muitas vezes, uma a duas semanas depois é “arrasador” a nível psicológico. “Muitos ficam deprimidos. Ao verem todo o cenário apercebem-se do seu estado e imaginam que estão de facto em risco de vida. Os que estão acordados não têm noção do dia e da noite. Por isso, temos um relógio na parede.”

Outra das consequências da ida aos cuidados intensivos é a miopatia, que se define pela fraqueza muscular, provocada pelo uso do curare, um forte relaxante muscular, que paralisa o doente.

Assintomáticos
Famílias devem fazer “esforço adicional”
O hospital de Leiria está a deparar-se com um “problema muito grande”, que é transversal a todo o País. Os idosos que já estão recuperados têm alta, mas como ainda estão positivos têm de manter o isolamento em casa. Ninguém os acolhe e ficam a ocupar camas, tão necessárias, nos hospitais.
Luís Pereira apela, sobretudo às famílias, para que façam um “esforço adicional” neste contexto de pandemia. “Têm de ajudar o Serviço Nacional de Saúde que não comporta isto tudo. Na semana passada tínhamos 12 doentes com alta, mas nem os lares nem as famílias os recebiam. Não tinham para onde ir e nós precisamos de libertar camas do SNS para receber outros doentes”, apela o director do serviço de Medicina Intensiva.
Em todo o País começam a surgir respostas sociais em parceria com o Governo, para encontrar alternativas para estes doentes. O Inatel, por exemplo, já disponibilizou alguns dos seus hotéis.