Viver

Testemunhos silenciosos

26 out 2018 00:00

Gárgulas | Os telhados do Mosteiro da Batalha são a casa de 380 gárgulas, seres inspirados no bestiário ou resultantes da interpretação dos cânones bíblicos. Muitas simbolizam a força sexual e vital, a libido, a fecundidade e a ascensão da alma.

Fotografia: António Barreto
Fotografia: António Barreto
Fotografia: António Barreto
Fotografia: António Barreto
Fotografia: António Barreto
Fotografia: António Barreto
Fotografia: António Barreto
Fotografia: António Barreto
Fotografia: António Barreto
Fotografia: António Barreto
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Fotografia: António Barreto
Fotografia: António Barreto
Fotografia: António Barreto
Fotografia: António Barreto
Fotografia: António Barreto
Jacinto Silva Duro

Mas também há nelas uma forte crítica social.

O Mosteiro de Santa Maria Vitória da Batalha foi todo pensado para impressionar todos quantos o vêem. É um símbolo da identidade e da autonomia nacionais permitida pela vitória, em 1385, dos partidários de D. João I, mestre de Avis, sobre o rei Juan I, de Castela, e as suas pretensões ao trono português.

É também um símbolo do poder do rei e da Coroa portuguesa. É, todo ele, uma espécie de livro inscrito na pedra, sem palavras nem alfabeto, que ensina muito da vida cristã, mas também faz o contraponto do bem e do mal e até há crítica social.

Construído segundo o estilo gótico flamejante, que predominou até ao princípio do século XVI, ostenta, nos seus telhados, “um universo plástico e funcional de cerca de 380 gárgulas diferentes”, como refere Patrícia Alho, no âmbito da obra As Gárgulas no Mosteiro de Santa Maria da Vitória. Função e Forma.

Profanas e religiosas, estas representações fantásticas tinham a hidráulica como função primordial – escoavam a água das chuvas dos telhados -, mas possuíam também um papel iconográfico e simbólico. “São objectos artísticos colocados na parte mais alta dos templos, fugindo, muitas vezes, ao escrutínio dos mortais”, explica a investigadora Patrícia Alho.

Nos tempos em que muito poucos sabiam ler e escrever, as catedrais, mosteiros e igrejas medievais passaram a ser uma maneira de ensinar aos fiéis os pecados, as agruras eternas e danação dos infernos, recorrendo a figuras fantásticas, capazes de transmitir lições de conduta e comportamento, através da natural conjugação da pedra - morta e estática - e da água - viva, orgânica e em constante dinâmica.

A utilização de gárgulas como elementos arquitectónicos começou no século XIII e terminou por volta do século XVI. Por toda a Europa, era comum a presença destes seres fantásticos e provocatórios a vigiarem das alturas os fiéis, recordando-os, através da sua função de crítica social e pedagógica, dos castigos do inferno e do perigo das tentações e pecados terrenos. Ainda hoje, aos olhos dos milhares de turistas que visitam a Batalha todos os anos, escapam aquelas representações burlescas, animalescas, associadas à vida terrena, à sexualidade e à guerra.

Entre Junho e Outubro, o mosteiro abriu o acesso aos seus telhados e à estatuária que ali se encontra a mais de mil pessoas. As visitas guiadas por Patrícia Alho, iniciaram-se em 2014 e são sempre concorridas. “As gárgulas do Mosteiro de Santa Maria da Vitória representam, sem dúvida, a distinção entre o bem e o mal. Têm também a função simbólica de protecção do espaço religioso e das almas”, refere a especialista.

Algumas desta figuras podem ser vistas, no Mosteiro da Batalha, com maior pormenor na exposição de fotografia Gente da Batalha, do sociólogo António Barreto, que cedeu as fotografias que ilustram este artigo.

Mulheres nuas, homens a segurar o sexo e um burro a ler 
Pelos telhados do monumento classificado como Património da Humanidade, há representações sexuais de animais, críticas religiosas e até sociais. É o caso das representações de um animal, que poderá ser um burro ou um porco, a ler.

“É constante o recurso simbólico à força sexual e vital, à libido e à fecundidade, bem como à ascensão da alma, à libertação do corpo terreno para o corpo celeste, o que nos mostra a preocupação do homem medieval com a religião”, sublinha a investigadora.

Nos céus por cima da Batalha, há mulheres nuas e até homens a segurar a sua genitália. “Há também representações de cães, que estão ligadas à ordem dos dominicanos, os frades que durante séculos viveram no Mosteiro de Santa Maria da Vitória.”

Isto demonstra que, além da comprovada função hidráulica, as gárgulas tinham também outros papéis, entre eles o de protecção dos espaços religiosos e, muitas vezes, como elementos pedagógicos para os fiéis, sobre, por exemplo, o manancial de pecados que tentavam homens e mulheres, sem distinção da classe social.

Curiosamente, com a construção da Capela do Fundador, a função proteccional das gárgulas ampliouse e, além de protegerem a Casa de Deus, passam também a proteger as almas do monarca D. João I e de toda a família real.

“As gárgulas têm também uma missão educativa para o fiel: ensinam-lhe a diferença entre a casa de Deus e a do Homem, casas bastante distintas que se regem por diferentes leis”, adianta a investigadora.

Parir filhos pela boca, um índio e um dodó
Na fachada da Igreja, há uma estátua de uma freira com um feto a sair-lhe da boca. Neste caso, a função hidráulica da figura, que, normalmente, é assegurada pela boca, passou a ser realizada pelos olhos.

“É única em todo o mosteiro. Acredito que seja uma crítica às freiras”, diz Patrícia Alho. No interior do templo, a inspiração é a vida de Cristo e assume uma função pedagógica destinada aos fiéis, mas, no exterior, as escolhas são mais profanas.

Ou, como refere o também investigador Paulo Pereira, é “uma visão carnavalesca do mundo e do mundo ao contrário, usando temas provocadores, como por exemplo os obscenos”, adiantando que existem iguaigualmente figurações relacionadas com o bestiário popular e com a sobrevivência de cultos, rituais de origem pagã, ou da religião não dominante.

A escolha da temática das peças, tendo em conta o carácter normalmente fechado da Igreja, em relação a questões como o sexo, pode parecer desajustada para figurar nos telhados de um templo, mas as peças eram autorizadas pelo mestre da obra - figura semelhante a um arquitecto – com o devido conhecimento do dono da obra, a Igreja.

Só depois os canteiros e pedreiros passam à tarefa de criar estas figuras fantásticas. Mas, nos restauros, a malha da supervisão alargava e pode ter sido assim que algumas peças mais “atrevidas” ganharam um espaço nos telhados do Mosteiro da Batalha.

Patrícia Alho recorda o caso, na Sé da Guarda, de uma gárgula cujo rabo está virado para as bandas de Espanha, o “velho inimigo”. Além de casos deste tipo, há provas de que terá havido alterações nas esculturas.

Só assim se explica que, num edifício do século XIV ainda na pré-expansão marítima, haja no telhado uma representação de um índio da América do Sul, de um mongol ou de um dodó, grande ave não voadora parente dos pombos, natural das Ilhas Maurícias, que se extinguiu no século XVIII.

Os navegadores portugueses apenas aportaram ao arquipélago em 1505. As peças da Batalha poderiam ter saído de pesadelos ou das pinturas de Bosch, mas são maioritariamente objectos de restauro, de acordo com a investigação desenvolvida pelas autoras Patrícia Alho e Catarina Barreira que, desde há anos, se dedicam ao estudo das peças.

Isto significa que, muitas delas, foram reparadas, restauradas e até substituídas ao longo dos tempos e, em especial, aquando do grande restauro encetado por Luís Mouzinho de Albuquerque, no século XIX.

A investigação levou à conclusão de que existem três tipos de soluções no restauro das gárgulas no monumento; provenientes de restauro, completamente novas, criadas de rai

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