Abertura

Trocam saltos altos por biqueiras de aço para trabalhar nas obras

13 jan 2022 12:30

A cada ano que passa, aumenta o número de mulheres que trabalham na construção. Competência é palavra de ordem num sector que já vai derrubando estereótipos

Cláudia Vindeirinho
Cláudia Vindeirinho
Cláudia Gomes
Cláudia Gomes
Ana Sofia Santos
Ana Sofia Santos
Daniela Franco Sousa

Perdeu a conta às vezes que entrou no banco, para tratar de papelada, com a roupa e as botas salpicadas de cimento. Nem sempre foi bem vista por trabalhar nas obras, que se entendia ser coisa de homens. E por essa razão, nas escolas que os filhos frequentavam, quando se perguntava a profissão da mãe, a resposta acabava por gerar algum incómodo.

Mas hoje, aos 48 anos de idade e volvidas mais de duas décadas de trabalho na construção, Cláudia Gomes olha para o seu trajecto com o maior orgulho. “Nunca deixei que a discriminação me afectasse. Ao lado de um grande homem está sempre uma grande mulher. E vice-versa. O meu marido completa-me e dá-me alento”, salienta esta construtora da Caranguejeira, no concelho de Leiria, que adora trabalhar com a família num ofício que a realiza.

“Inspirado no nosso estilo de vida, temos um filho que aos 19 anos quis começar a ajudar-nos nas obras. E outro filho, entretanto já formado em engenharia, que também nos ajuda sempre que pode”, realça ainda.

Cláudia Gomes faz parte do grupo crescente de mulheres que trabalham na construção no nosso País. De acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística, no terceiro trimestre de 2020, o sector da construção empregava 307.600 pessoas, entre as quais 27.400 mulheres. Um ano depois, no terceiro trimestre de 2021, e apesar do número total de indivíduos empregados na construção ter descido para 298.200, o conjunto de mulheres a operar no sector continuou a subir para 37.100, ou seja, mais 9.700 do que no período homólogo do ano anterior.

Na nossa região, também são já várias as mulheres que trabalham no ramo, nota a Associação Regional dos Industriais de Construção e Obras Públicas de Leiria e Ourém. É mais fácil encontrar senhoras em funções relacionadas com a engenharia, como a direcção dos trabalhos, embora também haja casos de mulheres que operam na obra propriamente dita. Geralmente, fazem equipa com os maridos, integram micro-empresas ou empresas em nome individual.

Electricidade, canalização, serventia a pedreiros, fabrico e instalação de mobiliário são algumas das actividades onde fomos encontrar estas operárias. E quem recorre aos seus serviços rende-se à competência por elas demonstrada.

Rui Oliveira, administrador da empresa de madeiras Valco, da Caranguejeira, está entre os empresários que nos últimos anos se tem cruzado com várias mulheres que trabalham na construção, formando equipa com os seus maridos. “Há muitas tarefas neste sector que podem ser perfeitamente desempenhadas por senhoras. São tarefas que exigem competência e não é por serem realizadas por elas que deixam de ficar bem feitas”, frisa o empresário.

“Estes trabalhos já não são tão duros como eram, porque o investimento na tecnologia veio minimizar o esforço físico”, considera Rui Oliveira. Além disso, trabalhando por conta própria, com os seus maridos, “as senhoras podem ter vencimentos maiores e fazer uma melhor gestão dos seus horários, que conjugam mais facilmente com a vida familiar”, acrescenta o empresário.

Assentar tijolo, manobrar gruas e dirigir o camião
Para Cláudia Gomes, o interesse pela construção surgiu por volta dos seus 20 anos. Nessa altura, quando ainda namorava, construiu a sua própria casa com o futuro marido. “Ele achou logo que eu tinha jeito e que um dia nos devíamos estabelecer os dois por nossa conta”, recorda. E tinha razão, o plano havia de se concretizar e com sucesso. Ambos gerem hoje uma empresa de construção e de remodelação, que se dedica ainda à compra e venda de terrenos.

Com carta de condução de veículos pesados, Cláudia dirigia a carrinha e o camião, assegurava o transporte dos empregados, dos materiais, manobrava a grua, abria alicerces, assentava tijolo, tirava entulho, fazia o que fosse necessário. Além de tudo isto, mantinha, e ainda mantém, outra actividade profissional. É condutora de um autocarro escolar num colégio.

Com o passar do tempo, a sua empresa tem-na desviado para outros afazeres, mas, sempre que é preciso, vai dar uma ajuda nas obras. Porque precisam dela e porque ela gosta dessas tarefas, sublinha.

“No início era muito discriminada. Até o senti quando tirei a carta de condução de pesados”, conta Cláudia, que se congratula pelo facto de a sociedade portuguesa ter hoje uma mente mais aberta. Apesar tudo, reconhece, os colegas de profissão sempre a respeitaram. “Talvez por saberem que eu também sou a sócia, a patroa”, supõe.

Trocar limpezas por tubos e filamentos
O episódio ainda é tema recorrente de conversa, e de gracejo, entre este casal de electricistas e canalizadores de Sobral, em Leiria. Quando certo dia Ana Sofia Santos acompanhou Bruno Sousa numa reparação a fazer numa casa habitada, a proprietária do imóvel, já idosa, apressou-se a fazer sala, convidando Ana Sofia a sentar-se com ela no sofá.

“Como na cabeça da senhora não fazia sentido que a minha esposa estivesse ali também para trabalhar, convidou-a para assistirem as duas ao programa de televisão da Cristina Ferreira”, recorda Bruno.

A mentalidade dos mais jovens já é outra, mas para os mais velhos ainda é difícil compreender que as mulheres também têm competência para trabalhar nas obras, refere o técnico. Isso é totalmente perceptível entre as senhoras mais idosas que, à chegada de Ana Sofia, costumam apressar-se a arrumar a casa, como se de uma visita se tratasse, relata ainda.

Ana Sofia, de 38 anos, completou o ensino secundário e frequentou a Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Politécnico de Leiria. Mas acabou por abandonar o curso de Gestão de Empresas quando percebeu que não estava a ter o aproveitamento escolar que pretendia. Inicialmente, desempenhou funções administrativas em três organizações diferentes. Mas engravidou e atravessou um período de desemprego. Nos últimos anos, dedicava-se às limpezas.

A ideia de a levar para as obras partiu do marido, que já contava com largos anos de experiência em serviços de electricidade e de canalização. Foi uma questão prática que os motivou, salienta Bruno. “Como a mão-de-obra nestas áreas é escassa, cada vez que eu tinha de subcontratar alguém, ficava-me muito caro. Alguém que viesse para me ajudar, durante uma semana ou semana e meia, cobrava-me mais caro do que ganhava a minha mulher nas limpezas. Além disso, eu estava a perder muito tempo, porque tinha de deixar de fazer os serviços para ir fazer as compras dos materiais.”

Para ambos, a decisão não podia ter corrido melhor. Apesar de estar ainda numa fase de aprendizagem, Bruno avalia o desempenho de Ana Sofia de forma muito positiva. E nas obras, realça, “não somos marido e mulher, somos colegas de trabalho”. “Há respeito. As pessoas gostam de ver as mulheres a trabalhar nestas áreas. Não há discriminação”, observa o técnico, que reconhece todo o profissionalismo e responsabilidade na companheira. “Já aconteceu ter de ir fazer coisas sozinha na obra. Não me oponho, é trabalho. É igualdade de género. Entregam-lhe chaves de obras, orçamentos, tal e qual como se fosse a mim.”

“Se estivesse sozinho a trabalhar não teria a capacidade de resposta que juntos conseguimos dar”, constata Bruno. Além disso, o técnico entende que a participação feminina confere “mais sensibilidade nos pormenores” e “uma outra visão na resolução de problemas”.

Ana Sofia recorda-se perfeitamente da data em que se estreou nas obras, há cinco anos: “Foi no Dia da Mulher”. Tal como o marido, faz agora trabalhos de electricidade e de canalização. E quando ele não precisa de apoio num serviço, é hora de comprar material ou de fazer a contabilidade. “É cansativo, mas é um desafio. Nunca faço a mesma coisa”, assegura Ana Sofia.

No meio profissional, “trato o meu marido como se fosse o meu patrão, porque está mais por dentro do ramo. E não há espaço para discussões de casal”. Quanto aos outros homens, “olham com admiração”. Em casa, a entreajuda é idêntica. O casal reparte responsabilidades com a educação dos filhos e com as tarefas domésticas, explica Ana Sofia.

Abandonar a gestão para singrar nas madeiras
Claúdia Vindeirinho, de 38 anos, de Santa Eufémia, em Leiria, completou o ensino secundário na área de Economia, trabalhou numa empresa de construção civil, como recepcionista, e aos fins-de-semana sempre ajudou o marido, que fabrica mobiliário para a construção.

Não começou de imediato a trabalhar no negócio do esposo. Por um lado, como não percebia do ofício, tinha receio de não se enquadrar. Por outro, ainda sonhava que pudesse encontrar uma oportunidade de emprego na área da Economia. Mas Cláudia acabou por se render às evidências. A actividade profissional que desejava teimava em não chegar e o marido precisava da sua ajuda. Começou a trabalhar com o esposo há 18 anos.

Hoje, lixa e enverniza móveis, descarrega camiões com materiais, mas também já trata do que for preciso com os fornecedores, assegura pagamentos e recebimentos e vai para as obras fazer medições e encontrar soluções funcionais e decorativas. “Já nem me vejo sentada todo o dia à frente de uma secretária”, admite. “Agora temos dois filhos, devia abrandar o ritmo de trabalho, mas não é fácil, porque há muitas encomendas e há falta de mão-de-obra disponível nesta área”, realça ainda Cláudia, que, actualmente, com o seu esposo, lidera já uma pequena fábrica de móveis com quatro empregados.

Nas obras, conta Cláudia, “os homens olham para mim”. “Como é que vem uma mulher para tirar medidas? Olham de cima a baixo, como se eu não tivesse tanta competência como eles."

“O segredo é ignorar, falar sobre o serviço, até que eles reconheçam que percebo disto”, expõe Cláudia. “Mas não há nem piropos nem stresses”, realça. “Sou muito observadora. Acho que há pormenores que podem escapar aos homens e a nós não”, defende. Entende que tem a mais-valia de ter boas ideias, de saber dar bons conselhos de decoração, que depois ajuda a executar em conjunto com o marido e a restante equipa.

Descobrir as obras quando a saúde falha
Tal como para Cláudia Vindeirinho, também para Patrícia Gomes, de 38 anos, trabalhar nas obras foi o “plano B”. Patrícia tirou o curso de auxiliar de saúde, mas há cerca de 10 anos teve um acidente e deixou de poder fazer grandes esforços. Trabalhar na área da saúde, onde tinha de ajudar a levantar e a mover doentes, deixou de ser viável. Poderá parecer um contrassenso, o facto de ter encontrado nas obras um trabalho mais leve. Mas foi o que lhe aconteceu, garante a ex-auxiliar de saúde de Espite, em Ourém.“Há muita coisa que não é uma questão de força, mas uma questão de jeito.”

O marido trabalha por conta própria na construção. Dedica-se à remodelação de casas e trabalha em várias vertentes, desde assentar soalho, forrar tectos e edificar paredes de pladur. Nos últimos dois anos, Patrícia passou a ajudá-lo no seu ofício. Trata de papéis no escritório e também sai com ele para as obras, onde o apoia no transporte de materiais e aprendeu a trabalhar com pladur e tectos de PVC, exemplifica.

“Já vi outra mulher numa obra, mas ainda é invulgar”, reconhece Patrícia Gomes, que diz não se importar de laborar num meio masculino, onde exerce ao lado do seu marido. O ordenado não é fixo como fora outrora, mas uns meses compensam os outros e, feitas as contas, o saldo é positivo, avalia a operária de construção.

Ajudar o marido e “distrair” a cabeça
Para Maria Otília Silva, de 50 anos, de Albergaria-dos-Doze, em Pombal, trabalhar na construção também é uma experiência relativamente recente. Foi empregada fabril, numa indústria de cerâmicas, fez limpezas e depois disso dedicou-se ao filho e às tarefas domésticas. Foi há dois anos, depois de o filho ter saído de casa para estudar na universidade, que Maria Otília tomou a decisão de acompanhar o marido nos seus trabalhos de remodelação de casas particulares. “Foi bom para me distrair e para o ajudar”, explica ao nosso jornal.

Transporta e segura materiais, prepara tudo para facilitar o desempenho do esposo. “É um trabalho pesado e eu ando ali de graça, para o apoiar”, realça Maria Otília. Se tivesse de trabalhar nas obras, sem ele, talvez não se afoitasse. Talvez se sentisse desenquadrada num local onde quase só existem empregados do sexo masculino. Mas, do lado do marido, colaborar neste cenário “é cinco estrelas”.

“Não me sinto discriminada. Se alguns olham, é apenas porque ficam admirados e reparam no que estou a fazer”, expõe Maria Otília.

Para o marido, Nélio Silva, o contributo da esposa é precioso. “Ajuda- -me quando o trabalho aperta mais e quando é preciso uma mão extra. Basta dizer-lhe que quantidade de cimento preciso, que ela sabe fazer. E carrega os baldes. Aliás, os tijolos da nossa casa foram quase todos acartados pelas mãozinhas dela”, orgulha-se o operário de construção. “A minha avaliação é positiva. Sozinho, levava mais tempo a fazer as coisas. E, algumas delas, nem conseguiria mesmo fazer”, reconhece ainda.

Elísio Estanque, sociólogo
Tecnologia e escassez de mão-obra ajudam a quebrar estereótipos
“Quando o trabalho assalariado se vulgarizou, começou por estar mais ligado ao universo masculino. Era de forma geral um trabalho manual e que exigia esforço físico. Por isso, foi-se formando uma divisão social do trabalho e dos papéis. A sociedade foi desenvolvendo ideias sobre o tipo de trabalho que competia ao chefe de família e ao trabalho doméstico, que estava reservado à mulher”, contextualiza Elísio Estanque.

“Era um sistema patriarcal, onde o homem tinha o poder, por monopolizar habilidades, destreza e força”, prossegue o sociólogo. “Quando a indústria começou a expandir-se, depois de finais de século XVIII, havia necessidade de suprir a falta de mão-de-obra, que era ainda mais expressiva nos períodos de guerra, que mobilizava os homens. Foram nessa altura incorporadas mulheres em vários sectores da indústria”, relembra Elísio Estanque.

Por outro lado, observa ainda, “à medida que a tecnologia se desenvolveu, o trabalho que exigia mais força física passou a ser substituído por tarefas que exigiam mais intelecto e destreza”. Ainda há áreas como a Educação ou a Saúde, onde existe grande número de mulheres, até porque durantlongos anos foram elas as cuidadoras dos filhos e da família, realça o sociólogo.

No entanto, precisamente porque o esforço físico agora necessário nalgumas profissões se tornou menor, as mulheres passaram a exercer numa grande multiplicidade de actividades, desde a construção à condução de veículos pesados, repara o investigador. E os homens também passaram a trabalhar em áreas onde outrora exerciam muitas mulheres, como é o caso da Enfermagem e da Saúde em geral, exemplifica Elísio Estanque.

“Foi-se reconhecendo o estatuto de igualdade entre homens e mulheres e proibindo as diversas formas de discriminação”, salienta o especialista. “Tudo isto oscila ao sabor da legislação, ao sabor da mudança de mentalidade, do mercado de emprego, da carência de mão-de-obra e dos fluxos migratórios”, prossegue o sociólogo. “E se nalguns sectores a integração de mulheres começa a resultar, essa tendência vai-se disseminando por outros ramos”, constata.