Entrevista

Ana Catarina Infante: “Não sabemos envelhecer. Queremos continuamente estar na energia da criança”

28 abr 2022 13:30

A enfermeira organizou o primeiro curso em Portugal para formar doulas do fim de vida, profissionais que ajudam a trabalhar questões relacionadas com a doença e a morte

A proximidade está a desaparecer das nossas vidas em vários contextos e na morte também?
Há um distanciamento geral das pessoas e dos profissionais de saúde. Eu falo da experiência: sou enfermeira, mas aprendi a ser pessoa enquanto profissional de saúde. Para nós, profissionais de saúde ou mesmo familiares e afins, estarmos com pessoas com doença crónica e irreversível, na sua vulnerabilidade, e que podem morrer, seja devido à doença ou mesmo ao envelhecimento, é preciso termos estas questões bem trabalhadas, porque há uma fusão daquilo que são os nossos medos, as nossas dores, no outro. Há uma fusão e há um espelhar daquilo que é nosso. Que não tem de ser e na maior parte das vezes não é necessariamente do outro. Temos muito a tendência a fazer isso nas nossas relações. Supomos que sabemos cuidar, que sabemos amar, sem questionar quais são as necessidades do outro e efectivamente aquilo que o outro precisa.

A maioria dos óbitos hoje ocorre em circunstâncias diferentes do passado.
É preciso contextualizar na história o que nos levou até aqui, sem apontar o dedo, sem atribuir culpas. Neste momento, acredito eu, estamos numa fase de encontrar um equilíbrio. Se olharmos para o nosso passado não assim tão distante, as pessoas morriam mais em casa. O hospital devia ser um sítio de recuperação de uma situação aguda. A maior parte das vezes não é isso que se passa e as pessoas acabam depois por andar de instituição em instituição. Por várias razões. Antes, as pessoas estavam mais em casa. Havia uma pessoa, maioritariamente mulher, que estava em casa e que assumia o papel de cuidadora, mas também havia muito descontrolo de sintomas, porque a ciência ainda não conseguia ajudar. A ciência evoluiu e não é normal, hoje, alguém estar com sintomas descontrolados. Não é necessário, de todo. Portanto, antes as pessoas podiam morrer em casa, mas podiam morrer com menos alívio de sintomas. Hoje, é um bocadinho o contrário. As pessoas estão mais no hospital. Às vezes estão em casa, mas os familiares, no momento em que começa a aproximar-se o fim de vida, têm medo. E há o movimento de ir para o hospital.

Em Portugal, há muitas pessoas a morrerem sozinhas?
Sim, nos hospitais, nos lares, sim.

Demasiadas?
Sim, há. Pode não ser, se calhar, a palavra correcta. As pessoas podem morrer sozinhas e tranquilas. É [morrerem] com muita falta de amor, com falta de acompanhamento. E neste processo de grande vulnerabilidade, que é nós vermos o nosso corpo a perder capacidades, e todos os lutos que advêm daí, as pessoas estarem efectivamente sozinhas e a não serem reconhecidas e amadas. Nas fases da nossa vida em que não estamos tão bem, mais tristes ou mais zangados ou mais depressivos, é difícil termos alguém que esteja connosco e não nos queira mudar. É difícil termos alguém que nos acompanhe, nos veja, nos ame, sem nos querer mudar e a mesma coisa se passa no momento de fim de vida, em que há uma transformação que está a ocorrer a vários níveis. E a forma como os outros estão connosco, nos vêem, nos reconhecem, conta. Muito.

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