É um dos fundadores do Movimento de Acção Ética, que se apresenta como uma iniciativa cívica de pessoas “desassossegadas” com a “acentuada erosão ética e moral”. Em que áreas mais se sente essa erosão ética?
Nas sociedades contemporâneas e nos tempos actuais fala-se, cada vez mais, de ética, o que é positivo. Mas, muitas vezes, fala-se de ética quase como uma obrigação discursiva, aquilo a que chamo de ‘markética’, ou seja, o marketing da ética. Ao contrário da política, na ética não basta parecer. É preciso ser. A ética exige autenticidade, firmeza de princípios, estar impregnada na vida das pessoas e das instituições. É uma grande exigência. Vivemos um tempo, sobretudo no mundo ocidental, de relativismo ético. Parece que não há valores, que o que importa são as opiniões. Podemos ter opiniões, mas acima das opiniões estão os valores, os princípios, que substanciam as nossas atitudes, decisões e acções. Juntamente com este relativismo ético e com o subjectivismo inerente ao relativismo, há aquilo que eu considero o pior mal das sociedades contemporâneas, que é a indiferença. As pessoas estão numa situação de exagerado individualismo.
Mas, perante situações concretas, são, normalmente, generosas.
É verdade e temos exemplos disso. Mas, ao mesmo tempo, está a instalar-se a ideia do ‘isso não é comigo’, ‘não me interessa’ ou ‘cada um faz como quer’. A ideia da indiferença acaba por corroer não só a exemplaridade, mas também o bem comum. Precisamos de uma termostato ético. Isso não significa que, pensando na ética, façamos tudo bem. Não. Mas sabemos quando é que fazemos mal. O barómetro ético que devemos ter dentro de nós deve ser um regulador que nos permite valorar as acções, pelo bem ou pelo mal.
A política é um dos campos onde a tal erosão ética mais se faz sentir?
De facto, quando se fala de ética, associamos sempre a política. Primeiro, porque a política é mais escrutinada do que outras actividades. Mas a ética é também a ética empresarial, a ética laboral ou a ética familiar. Segundo, porque, em tese, a política é a prossecução do bem comum e do bem-estar das pessoas, das famílias e das comunidades. A exigência ética tem de ser reforçada. A ética é muito mais exigente do que a Lei. Nenhuma Lei proíbe o ódio, a malvadez, a inveja ou a deslealdade. O que nos pode impedir de fazer isso é o bom uso da ética. Dito de outra maneira: há coisas que a ética nos obriga e que a Lei não nos coloca e ao contrário também. O desenvolvimento das sociedade leva a que, cada vez mais, a Lei tenha componentes de exigência ética, mas nunca chegará a determinar aquilo que é o nosso tribunal interior, a consciência. Dou um exemplo: há 30 anos existia pouca legislação sobre incompatibilidades. Hoje, já há, mas não se atinge a exigência ética que deve existir. É comum ouvirmos ‘fui eticamente irrepreensível, porque cumpri escrupulosamente a Lei”. A ética republicana não é apenas cumprir a Lei. A Lei é o patamar inferior da ética. Quando saí de vice-governador do Banco de Portugal fui convidado para ir para o sector bancário. A Lei permitia-mo, mas não aceitei. Quando fui ministro das Finanças, terminei a minha carreira no Banco Comercial Português.
Por que fez essa opção?
Podia haver algum conflito com o banco e queria manter toda a independência. A Lei não o exigia, mas a minha ética sim. A política é um elemento fundamental do dever ético, que a Lei vai incorporando, mas não é suficiente para todas as circunstâncias. Os últimos casos mostram bem a importância de acrescer ética à questão legal. No caso da ex-gestora da TAP foi evocado que a Lei não obrigava a determinados procedimentos. No plano legal, pode estar tudo bem, mas a exigência ética vai muito além disso.
Na sequência dos ‘casos e casinhos’, como lhe chamou o primeiro-ministro, o Governo aprovou um questionário de avaliação de membros indicados para integrar o executivo. O que pensa da medida? É útil?
É uma medida tonta. Em primeiro lugar, é passar um atestado de menoridade a quem convida. Um ministro para convidar um secretário de Estado não precisa de um inquérito. Se não tem condições para fazer a escolha sem um papel, não pode ser ministro. É quase infantil. É como dar um papel a uma criança com as perguntas que tem de fazer na escola. Depois, o questionário não cobre tudo, por mais perguntas que se façam. Numa entrevista desse tipo, às vezes, o mais importante são os silêncios, os olhares, as indecisões e as perguntas que resultam da conversa. É uma medida para pacóvio ver.
Nos últimos tempos, o Presidente da República endureceu o discurso em relação à actuação do Governo. Que mensagem quis passar com o aumento de tom das críticas?
Não sei o que vai na sua cabeça. Permita-me desviar um pouco. Esta coisa de encarar de forma diferente os primeiro e segundo mandatos presidenciais incomoda-me. A visão de no primeiro se pensar no segundo e de no segundo se estar livre para já não pensar no seguinte. Depois, há estes amuos e arrufos entre órgãos de soberania. O principal é cada um respeitar a função do outro. Temos um Presidente da República muito activo na chamada magistratura de influência. Em meu entender, às vezes ultrapassa a linha que me parece indicada. No caso do pacote da habitação, concordo com a maior parte das observações que fez.
Também partilha da sua visão de que o Governo nasceu de uma maioria “cansada” e “requentada”?
Não sei se é uma maioria cansada, mas este primeiro ano de maioria absoluta foi um ano de desgaste muito profundo, dando a sensação de cansaço. Às vezes, o Governo dá a sensação de que governar é uma maçada. Há um elemento comparativo. Quando não tinha a maioria absoluta, o Governo passava a sensação de que era mais activo e diligente. É uma pena que este primeiro ano tenha sido assim. Quando um partido ou uma coligação têm uma maioria absoluta, o primeiro ano é fundamental para gerar as reformas de fundo necessárias ao País. Um dos grandes problemas deste Governo é não conseguir teruma visão estratégica. Actua em função da semana, dos obstáculos que vão surgindo, e é pouco virado para largos horizontes. Nos domínios da Educação, da Justiça e das Obras Públicas, como o aeroporto e a ferrovia, precisamos de estratégia. Veja-se o caso do aeroporto, de que ouço falar há 50 anos. Em Maio houve o caso do ex-ministro [Pedro Nuno Santos]. Depois, criou-se uma comissão e nunca mais se decide. O aeroporto de Lisboa está a transbordar por todos lados.
A Educação e a Justiça são áreas onde, há anos, se fala na necessidade de reformas estruturais.
Há reformas estruturais de dois tipos: aquelas que contêm um debate ideológico, às vezes pesado, como a Saúde e a Segurança Social. Há outras em que existe um relativo consenso. É o caso da Justiça e da necessidade de dar celeridade e eficácia ao sistema. Uma das grandes injustiças no País é a Justiça não actuar no tempo devido. Até na Educação não há grande debate ideológico a fazer, a não ser eventualmente a questão do ensino particular. Entra um ministro e muda o sistema de exames ou os currículos. Veja-se também o exemplo do sistema fiscal. Estamos sempre a mudar pequenas coisas ou a aumentar impostos, que começam por ser temporários e que depois passam a definitivos. Talvez seja ingénuo, mas parece-me que há condições para os principais partidos estabelecerem reformas, que não têm de ser perfeitas, mas que tenham folgo e que durem no tempo. As pessoas, as instituições, as empresas e o País precisam de estabilidade de regras para poder avançar. O Governo está a perder a oportunidade de reformar.
Em relação ao pacote da habitação, quais as principais críticas que faz?
O mais criticável é o voluntarismo sobre as casas devolutas. É uma vitória do curtíssimo prazo sobre aquilo que deve ser o País no médio e longo prazo. Quando o Estado quer arrendar casas devolutas para subarrendar, está a dizer às pessoas para não comprarem casas para o mercado do arrendamento. A prazo reduz a oferta, já de si exígua. Às vezes, dá a sensação que os governantes não saem à rua. Esse é outro problema da política. É difícil atrair pessoas com percurso fora da política, que tenham folgo, background. Hoje, a linha de recrutamento para os governos e para as autarquias gira em torno das juventudes partidárias e de pessoas que nunca saíram da política. Olhando para o currículo de boa parte dos membros do Governo, percebe-se que nunca saíram da política. Era importante haver mais gente de fora da política, com independência intelectual e valoração ética. Tive a oportunidade de ler o currículo da ministra da Habitação, uma jovem certamente com valor, mas que fez o seu percurso como adjunta, chefe de gabinete, secretária de Estado e agora ministra. Que vida teve fora da política? Num assunto como a habitação, não basta ler os manuais e fazer excelentes powerpoint e quadros de excel. É preciso perceber o País e as pessoas.
É a política que se fecha às pessoas de fora, com background e experiência de vida, como referiu, ou são essas pessoas que se querem manter afastadas da política?
As duas coisas, mas admito que o segundo elemento tenha mais força, também por não quererem ver a sua vida pessoal escrutinada, às vezes, de forma muito agressiva. É politicamente incorrecto dizer isto, mas a maior parte dessas pessoas não quer ir para a política, porque têm uma descida brutal nos rendimentos. A política, no sentido como eu a entendo, tem de ser bem remunerada, até para não haver outro tipo de tentações. Quando fui ministro do Trabalho e da Segurança Social passei a ganhar 26% do que estava a ganhar. Não me estou a queixar. Fui eu que decidi. É apenas um exemplo de como não é fácil tomar decisões desta natureza.
O Governo tem condições para cumprir o mandato?
Sou muito institucionalista. Um Governo que é eleito para quatro anos deve cumprir. No fim do mandato, nós, os eleitores, temos o dever e o direito de fazer escolhas. O problema são os ciclos eleitorais. Todos anos há eleições que podem ter impactos na maior ou menor fragilidade do Governo, mesmo com maioria absoluta. Depois, há as sondagens, que se fazem todas as semanas. Não temos sossego. Não votei neste Governo, mas defendo que deve cumprir o mandato.
Acha expectável que o CDS-PP volte ao Parlamento nas próximas legislativas?
É uma pena que o partido não esteja na Assembleia da República. Foi vítima do adiamento de uma reforma que nunca se faz, a eleitoral. Faz falta um círculo nacional, que agregue os votos desperdiçados nos distritos. O CDS teve cerca de 200 mil votos no País e não elegeu deputados. Outros, com menos votação, têm representação parlamentar. Desejo que o CDS volte ao Parlamento. É bom para a democracia. Precisamos de partidos democráticos, que ventilem diferentes formas de pensar o País, e não de forças que são mais atractivas, como protesto, e que têm a facilidade de apresentar soluções fáceis para problemas difíceis. O CDS foi a primeira vítima do populismo. Espero que possa recuperar. Numa coligação de partidos à direita do PS, o CDS faz muito falta, até porque sempre teve bons quadros.
Como interpreta a renitência do líder do PSD em clarificar a possibilidade ou não de um acordo com o Chega?
E por que não se perguntou ao Dr. António Costa na primeira eleição após o Governo de Passos Coelho se se juntava a partidos da esquerda radical? Só se pergunta ao líder do PSD. Acho prudente que não tenha de referir isso agora. Os quadros políticos alteram-se muito rapidamente. Em termos puramente aritméticos, ele não poder dizer que com o partido A jamais fará entendimento. Pode estar a dar trunfos a esse partido. Não gostava de ver o Chega no Governo. Por isso, é que desejo que o CDS volte ao Parlamento.
Vê trabalho nesse sentido?
Quando não se tem assento parlamentar, não se tem visibilidade. É um trabalho muito difícil e ingrato. O CDS tem de fazer o caminho, não das pedras, mas dos pedregulhos. Tem de reentrar. Não temos nenhum partido que verdadeiramente represente os valores da democracia-cristã, do humanismo personalista. E isso faz falta ao País.
Como avalia as medidas anti-inflação do Governo?
O Governo criou imposto sobre lucros excessivos, quando o principal beneficiário da inflação é o Estado. Ganhou cerca de seis mil milhões de euros por força do aumento dos impostos, como o IVA, resultante da subida de preços. Como o Estado não pode auto-tributar-se, deve redistribuir parte significativa desses ganhos excepcionais. O Ministério das Finanças anunciou que parte será feito através do IVA Zero durante seis meses e apoios às famílias mais carenciadas.
O IVA Zero vai ter impacto na carteira dos consumidores?
No início, pode haver alguma incidência directa na diminuição de preços, mas temo que acabe por se diluir. Não posso deixar de dizer bem da medida, mas surge tarde e é temporária. Terminará em Outubro, mas a inflação não termina. A descida da inflação não significa que os preços não continuem a subir. Sobem é menos. São medidas de contenção da dor, analgésicos. Em Novembro os preços estarão mais elevados do que antes da medida.
Que alternativas defende?
Uma redução dos impostos, para sempre, sobretudo no IRS sobre os rendimentos do trabalho e sobre pensões. Isso sim era uma redistribuição na medida exacta dos ganhos. O Estado devia pegar em parte significativa do aumento da receita fiscal para diminuir os impostos das pessoas, das famílias e até das empresas. Era mais eficaz e mais justo. A classe média é a mais prejudicada com a inflação e as medidas não estão a ser tomadas para a classe média. Uma família com rendimentos medianos é fiscalmente rica. Tem taxas de IRS brutais. O Governo está a apostar em medidas cirúrgicas, para as franjas do eleitorado típico do PS: os funcionários públicos e as pessoas mais carenciadas. Acho muito bem o foco nas famílias mais pobres. Também concordo que se aumentem os funcionários públicos em mais 1%. Mas, e as famílias que não têm funcionários públicos? E os reformados que no início do próximo ano terão apenas metade do aumento que teriam com a Lei vigente?
“A minha fé nunca se alimentou de certezas”
Como vê a forma como a Igreja tem lidado com a questão dos abusos?
A Igreja Católica foi a única entidade em Portugal que criou uma comissão independente para fazer o levantamento das situações hediondas de abuso. Não vi o Estado a fazer isso com as instituições que acolhem crianças, nem as escolas nem o sector do desporto. Nos EUA e na Alemanha a investigação foi mais abrangente e verificou-se que os casos na Igreja, bastante penosos e inadmissíveis, não passaram de 3% das situações identificadas. O segundo ponto a ter em conta é o trabalho da comissão independente, sendo que independente não significa imparcial.
Acha que foi parcial?
Não digo isso. Em alguns aspectos, que foi menos cuidada. Referir que na freguesia A ou na escola B a pessoa disse que todas as crianças foram abusadas e contabilizar como vítimas todas essas crianças não me parece o mais ajustado. O número final reflecte generalizações, em alguns casos, um pouco abusivas.
Voltando à questão, como avalia a actuação da Igreja?
Houve aspectos absolutamente negativos, como a comunicação, que foi desastrosa, com opiniões contraditórias entre bispos, com um ou outro a fazer uma espécie de campanha eleitoral para promoções dentro da Igreja. Houve muitas hesitações, umas justificadas e outras que, justa ou injustamente, deram a ideia de que [os bispos] não estavam coordenados nem sensíveis para o grande sofrimento provocado por situações absolutamente ignominiosas e intoleráveis. A Igreja deve ser absolutamente clara e tomar medidas para afastar clérigos, nem que seja preventivamente. Percebo algumas das dificuldades que os bispos tiveram. Há casos que não oferecem dúvidas, mas também há acusações muito pouco fundamentadas. O princípio do contraditório não está a ser feito como devia. Fazendo um paralelismo, no caso Casa Pia muito se clamou pela presunção de inocência.
Era ministro da Segurança Social quando rebentou esse processo.
Agora fala-se, e muito bem, do terrível sofrimento daqueles que foram abusados. É nas vítimas que deve estar a centralidade desta questão sem prejuízo da presunção de inocência e do contraditório. Na Casa Pia não houve centralidade nas vítimas. Falava-se sobretudo dos alegados abusadores. Na altura, o PS procurou interferir na Justiça, no Ministério Público. Houve uma luta muito grande, travada por mim, pela Catalina Pestana e por mais algumas pessoas, para se falar das crianças abusadas. Então, o primado foi o dos abusadores, para os quais se pedia sempre presunção de inocência, que agora é esquecida. No último Conselho de Ministros do Governo do Dr. Durão Barroso, foram levados um conjunto de diplomas para aprovação. Tinha um, que já tinha sido apresentado, que previa um processo indemnizatório para as crianças abusadas na Casa Pia. É a primeira vez que falo disto. Bati-me pela sua aprovação. Havia muita gente contra. Algumas dessas pessoas são aquelas que agora, e bem, pugnam para as vítimas da Igreja tenham apoio e sejam indemnizadas.
A Igreja deve assumir a indemnização às vítimas?
Alguns bispos têm defendido que essa responsabilidade cabe ao abusador. Isso pode acontecer, mas a Igreja deve indemnizar como instituição.
Este caso abalou a sua fé?
Como português sinto uma grande tristeza e como católico uma grande vergonha. Mas não abalou a minha fé, que nunca se alimentou de certezas. Só tenho fé porque tenho dúvidas. Não sei se Deus existe, mas procuro viver assumindo que Deus existe, seguindo os ensinamentos de Cristo, uma vez caindo, outra vez levantando-me, mas com a boa dúvida que me faz sempre pensar. Isso produziu em mim uma relativa desintermediação da minha relação com Deus.
O que pensa do novo texto da Lei da Eutanásia que apenas prevê a morte medicamente assistida quando não for possível o suicídio assistido?
Dentro do mal que é a eutanásia, este é um passo positivo. Os defensores da eutanásia evocam o direito de escolha e a liberdade de quem quer morrer. A eutanásia exige que alguém mate. A solução agora encontrada trava um pouco aquilo a que se chama de ‘rampa deslizante’, ou seja, o abuso da eutanásia.