Sociedade

João Mota: “Para quem está em Los Angeles, Leiria ou Lisboa são iguais”

29 ago 2019 00:00

Entrevista | O responsável pelo desenvolvimento de negócio da Void, softwarehouse de Leiria, diz que a cidade está na mira das empresas de base digital e que a Inteligência Artificial é “o marrão da sala de aula"

Jacinto Silva Duro

A Void é um exemplo da tradicional e romântica empresa de software que nasceu numa garagem?
Quase. Tem já dez anos de história e não surgiu numa garagem, mas na sala da casa da mãe do Marco Cova. Ele e o Hugo Larcher, de quem fui colega na secundária Domingos Sequeira, de Leiria, fundaram a empresa e são os sócios-fundadores. O Marco gere a estrutura informática e a arquitectura de software, o Hugo é programador sénior de frontend. Eu assumi o desenvolvimento de negócio e parte comercial. Em 2012, surgiu o nosso primeiro cliente internacional de maior dimensão, que começou a exigir um crescimento rápido da força de trabalho da empresa. A Void procurou uma resposta no Instituto Politécnico de Leiria (IPL) e cresceu, num ano, de quatro pessoas para 12. Eu entrei em 2016, porque a empresa estava muito alavancada num só cliente e direccionada para um só produto. Estava na hora de dar um passo para nos diversificarmos e nos apresentarmos ao mercado. Começámos a procurar novos clientes nos EUA e, hoje, o tal cliente que era o mais importante em 2016, quase não tem expressão na nossa facturação. Temos 25 colaboradores e, em Setembro, iremos admitir mais quatro pessoas. Aqui, quase todos os programadores - muito jovens - saíram do curso de Informática da ESTG, do IPL. 

O facto de terem acordos de confidencialidade dificulta o trabalho, no momento de angariar novos clientes? 
É verdade, mas há alguns exemplos que posso divulgar. A nível de clientes internacionais, estamos a desenvolver uma plataforma de gestão de frotas de camiões, para um cliente que tem cerca de 200 veículos mas que pretende, depois, oferecer a solução ao mercado. Criámos também uma app para uma cadeia de restaurantes dos EUA que tem uma área privada, só para membros, e o acesso é feito através dessa aplicação móvel, que também permite desbloquear conteúdos multimédia, através de Realidade Aumentada. Ou seja, há quadros na parede e se lhes apontar- mos a câmara do telemóvel eles animam-se ou falam. Temos ainda o Dream Football, uma plataforma de scouting de talentos que criámos há dois anos e onde um dos accionistas é o Luís Figo, que tem lá as Escolinhas do Figo. Os miúdos podem fazer o carregamento de vídeos e serem descobertos por olheiros. Nós criámos as aplicações web e mobile. A app móvel permite gravar "no passado", ou seja, apontamos a câmara a um jogador e, em vez de gravar um vídeo com uma duração enorme, grava um clipe com um passe, um remate que seleccionamos ou o que quisermos e, no final, montamos um vídeo que se carrega para toda uma rede social completa, com gostos, comentários, apoios, e partilhas. O Figo e o Dimas seleccionam regularmente os melhores e os jovens vão subindo no ranking. Um dos projectos que temos em curso há mais tempo e que gerou a nossa sucursal em Los Angeles (EUA) é um serviço de preservação digital de dados. Isto é, uma espécie de backup a muito longo prazo. No dia-a-dia, usamos discos, CD, DVD ou a cloud para guardar fotografias e documentos e o horizonte temporal desses suportes é de cinco ou dez anos. A longo prazo - 20, 30 ou 50 anos -, a integridade dos dados tem de ser preservada e verificada e a obsolescência dos formatos é outro obstáculo. Quem tem cassetes de vídeo Beta ou mesmo VHS sabe do que estou a falar. É preciso verificar se ainda se consegue aceder à informação. O nosso cliente, onde temos uma participação e é nosso sócio, oferece um serviço de preservação num data center em Los Angeles e utiliza um software que extrai os metadados e verifica essa integridade. Os clientes principais são todos estúdios de Hollywood que extraem permanentemente mais-valias daqueles ficheiros, com lançamentos especiais, remasterizações e de aniversário dos seus filmes. Valem milhões e é fundamental que os dados não se percam. Entre os clientes de referência onde o nosso software é utilizado, está a MRC que produzia a House of Cards e os filmes do Iñárritu, ou a Zoetrope, do Francis Ford Coppola. A Universal está a passar um mau bocado porque, em 2008, teve um incêndio que destruiu os originais de uma série de obras de referências. 

E também estão presentes em Nova Iorque. 
Sim. Através do João Francisco, que também foi nosso colega na Domingos Sequeira, e que também trabalha na área de produção de multimédia. A dada altura, falámos e surgiu a ideia de colaborarmos. Ele, que tem um escritório em Manhattan, percebeu que, na rede de contactos dele, poderia angariar muitos negócios. Temos já uma série de oportunidades e o primeiro contrato, com a unidade neo-natal do hospital Mount Sinai West, uma referência nos cuidados de saúde, pode concretizar-se em breve. 

Perfil 
Engenheiro Civil e Informático 

João Mota, 42 anos, é natural da Bidoeira de Cima (Leiria), estudou na Escola Secundária Domingos Sequeira e sempre teve uma paixão pela Informática, porém fez um longo percurso até se juntar a esse amor de uma vida. "Programava desde muito novo e sempre quis estudar Engenharia Informática. Quando acabei o secundário, candidatei-me ao Instituto Superior Técnico, mas o meu pai, que tinha um gabinete de projecto de Engenharia Civil, precisava de ajuda... convenceu- -me a seguir para o IPL e tirar Engenharia Civil, na ESTG, em Leiria, depois de ter entrado em Lisboa, em primeira opção, em Informática." No fim do curso, começou a trabalhar na Câmara de Leiria, passou pelo programa Polis e a Informática foi ficando para trás. Transitou depois para a Nordex, empresa alemã de energia eólica e seguiu-se a Infusion, empresa do Grupo Meneses da mesma área. Percorreu boa parte da Europa a criar subsidiárias da empresa. "Nunca andei tanto de avião. Pelo menos, duas vezes por mês. Foram anos de muito trabalho onde ganhei muita experiência." O sonho da Informática ia ficando cada vez mais longe. Em 2013, o grupo alienou a empresa e João transitou para a exploração de mercados no Norte da Europa. "Em 2016, o sonho voltou. Nem que tivesse de começar tudo de novo." Aconteceu marcar um café com Marco Cova, um amigo, fundador da Void que já não via há anos, que procurava alguém que pudesse ajudar a empresa a expandir a carteira de clientes. "Foi um bom encaixe". Fez o curso e tornou-se sócio e administrador, com a passagem da Void a SA, em 2017, em conjunto com o amigo e Hugo Larcher, o outro sócio.

A Void também está presente em Colónia, Berlim e em Berna.
Isso é recente. Temos um comercial com uma rede bem estabelecida que identificou oportunidades de negócio e está a fazer prospecção para nós, na área da preservação digital. Hollywood está a alavancar este negócio, mas ele tem muitas aplicações noutras áreas, como na preservação dos registos clínicos. Alemanha e Suíça são os países onde nos poderemos posicional melhor na Europa. Nós somos prestadores de serviços de valor acrescentado, que implicam inovação, tecnologias de ponta, de blockchain, Inteligência Artificial (IA), Realidade Aumentada… estamos mais próximos de um arquitecto do que de um construtor civil. O nosso cliente ideal tem de ser alguém que valorize o valor acrescentado por essas tecnologias. 

O facto de a Void estar sediada em Leiria não dificulta os negócios? 
Pelo contrário. Estamos perto do IPL e sentimos competição pelos alunos de Informática. Há 0% de desemprego, ou perto disso, na área. O Web Summit, que eu pensava que seria apenas um hype inicial, afinal, gera visibilidade e traz pessoas e negócios, tenho de admitir. Trouxe para cá inúmeras empresas tecnológicas e já há escassez de pessoal. Ser local é importante e embora estejamos aqui, os alunos de Lisboa conhecem-nos e sabem o que fazemos. Há muitos cá que não querem mudar de cidade, mesmo a ganhar duas a três vezes mais em Lisboa. A qualidade de vida em Leiria compensa bem a diferença salarial. O típico programador gosta de tranquilidade. A nível de angariação de negócios, não é uma desvantagem porque o nosso mercado é no estrangeiro. Para quem está em Los Angeles ou Nova Iorque, Leiria ou Lisboa são iguais. Se tiver de vir a Portugal, sair do aeroporto e fazer o caminho de carro, para eles, é normalíssimo. Se forem para Londres, até ao centro, têm uma viagem de duas horas ao volante. Em termos do mercado nacional, tenho de dizer que até, ao ano passado, ele teve uma expressão pouco relevante para a Void. Era 20% do total, mas, este ano, as coisas mudaram e é já metade. O empresário português está a amadurecer e a perceber a mais-valia do software à medida, em vez de investir imenso em soluções genéricas, tiradas de uma prateleira. Desenvolver software faz-se a partir de qualquer sítio, do Mundo e o nosso País é um sitio tranquilo, seguro, onde as pessoas vivem bem, trabalham com condições, são poliglotas, viajam e são cosmopolitas. Portugal trabalhou, vendeu-se bem e há multinacionais estrangeiras a fixar-se cá. É preferível vir aqui do que ir à Índia. Houve um efeito benigno que criou pressão no mercado de trabalho. 

Qual é o contributo do Grupo TICE, da NERLEI, para a região? 
É um grupo de trabalho de empresas da área da tecnologia da informação para a partilha de experiências, desafios e conhecimentos e criação de novas propostas para a regi

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