Sociedade

Paulo Borges: “odiar é tomar veneno todos os dias, na esperança de que o outro morra”

27 dez 2018 00:00

Entrevista | O filósofo, poeta e ensaísta, faz uma previsão para 2019 e aponta caminhos alternativos de pensamento, de estar em sociedade e ao bem-comum.

Jacinto Silva Duro

Fazendo um exercício de vidência, o que nos espera no ano de 2019?
Portugal, a Europa e o Mundo estão a viver um momento de uma crise que tem várias dimensões. Tenho assistido ao crescimento de uma crise que é interior... e de estado mental e emocional. Estudos recentes mostram um crescimento considerável de doenças do foro mental, com um forte destaque para a depressão. O nosso País é o quinto da Europa que tem mais problemas desse tipo e isto traduz um fracasso da civilização, que é construída por todos nós, com o objectivo de nos tornar mais felizes, com mais bem-estar, mais segurança e mais conforto, e isso parece estar a falhar. Isso traduz- -se também num mal-estar interior e não apenas mal-estar social e político. Muitas vezes, não se dá a devida importância a isto. Todavia, é a partir desse mal-estar interior que vem tudo o resto. Construímos uma civilização que nos pesa e que não corresponde aos objectivos para os quais a criámos. Isto traduz- se numa outra forma evidente de mal-estar interior que é a falta de sentido prático... e de propósito. Não pretendo generalizar, mas há uma tendência preocupante nas gerações mais jovens de "não saber muito bem o que se está a fazer no mundo". Na semana passada, no jornal Público, saiu um estudo que refere que cerca de um terço dos jovens portugueses não gosta e não se sente bem na escola. Sentem-se cansados e exaustos, não apreciam o que estão lá a fazer. Este é mais um sinal de fracasso da civilização. Creio que, em muitos países da Europa e, provavelmente, do Mundo, a escola está a falhar na sua missão de dar às novas gerações um sentido para a vida. 

"Em muitos países da Europa e, provavelmente, do Mundo, a escola está a falhar na sua missão de dar às novas gerações um sentido para a vida"

É uma questão que, infelizmente, se irá agravar, embora isto não queira dizer que não existam forças e movimentos em sentido contrário. Há cada vez mais pessoas a procurar um sentido profundo para a vida e creio que há um crescimento no interesse pela espiritualidade, que não tem a ver com uma religião em particular, mas que é uma busca por um sentido espiritual. Uma procura de maior atenção para o que se passa dentro de nós. A Universidade Católica Portuguesa fez um estudo na área da grande Lisboa que mostrou que a população que se assume como católica está a baixar em número e outras religiões estão a ganhar força, mas o que está a crescer mais, já na ordem dos 13,1%, é o número de pessoas que se sentem crentes, mas sem uma religião específica. Têm uma referência ou procuram um sentido espiritual para a vida, mas não se reconhecem em nenhuma das religiões tradicionais.

Leia aqui a segunda parte da entrevista:
“Há um Portugal que não se limita a tricas políticas, ao futebol, ao escândalo e à corrupção”

E a par do crescimento do mal-estar interior?
A par dele e como sua consequência, continuará a haver a ilusão e o desgaste na confiança das populações nos líderes e nas forças políticas mais tradicionais. Em Portugal, o desgaste dos partidos políticos é muito evidente. Pouco tempo após o 25 de Abril, aconteceu uma queda na confiança nesses partidos, que tem vindo a acentuar- se. Os movimentos de reacção a isto são populistas pois, há uma tendência de as pessoas, em momentos de crise, preferirem a segurança a todo o custo, sacrificando a liberdade e a justiça. Isso temse traduzido, a nível mundial, em líderes políticos com tendências extremistas de direita. No passado, foram de esquerda e agora a tendência é a direita, como aconteceu nos EUA, Brasil e nalguns países da Europa. Há uma busca confusa e cega de alternativas em termos sociais, políticos e económicos. Há uma situação de mal-estar e um estado das coisas com o qual as pessoas não se identificam. Há um sentimento de que a política deixou de dar um sentido para a vida e que tem mais a ver com a gestão de interesses pessoais, colectivos ou empresariais e não há preocupação com a res publica e com o bem-comum.

Dá a sensação de que o Mundo inteiro seguiu o exemplo português e se tornou sebastianista.
Há essa tendência messiânica que não é exclusiva de Portugal. Faz parte do ser humano. Em desespero de causa, o ser humano está sempre à espera de um líder carismático, um Messias e um salvador... há uma projecção num líder político de uma certa expectativa religiosa, que venha alguém de fora salvar-nos. “Puro, impoluto e forte”, que nada tenha a ver com a corrupção em que vivemos. Isso tem levado a muitos aproveitamentos, pois muitos líderes que se apresentam a reivindicar essas características são tudo menos puros e impolutos. É uma tendência que continuará a existir e reforçar-seá, eventualmente. Além disto, nos tempos que se aproximam, pareceme inevitável que iremos passar por mais dificuldades em termos ambientais. Alguns Governos começam a dar sinais de, finalmente, terem tomado alguma consciência do estado desastroso em que estamos nesse capítulo e fala-se agora, na União Europeia, da proibição iminente dos plásticos descartáveis. Há, desde há alguns anos, e Portugal tem sido pioneiro, um maior interesse pelas energias renováveis, mas tudo isto, dizem os relatórios científicos isentos, é muito pouco para se travar a corrida para o iminente colapso ambiental, sobretudo quando, nas cimeiras, não se chega a conclusões e medidas drásticas que são necessárias para parar este comboio descontrolado. Tudo leva a crer que as alterações climáticas continuarão a acontecer e que continuaremos a destruir a biodiversidade, as florestas e a poluir os solos e os rios. Esta civilização Ocidental, que surgiu a partir da Modernidade e das várias Revoluções Industriais e que, agora, se tornou global, é produtivista e industrialista. Há, entre nós, o mito do crescimento económico infinito e ilimitado, custe o que custar.


Num planeta com recursos limitados.
Para as pessoas continuarem a justificar esta ideia de crescimento económico ilimitado, há uma crença, que me parece ser um pouco neo-religiosa e quase messiânica, na tecnologia. A tecnociência há-de criar uma solução quando o ar estiver poluído e os solos gastos. É difícil conter este processo, daí parecer- me que vamos passar por maiores dificuldades em termos ambientais. Se a água começar a escassear, se os recursos energéticos começarem a escassear, poderá haver migrações geradas por essas alterações climáticas.

Muitos dos migrantes que têm chegado à Europa são refugiados climáticos.
Verdade, mas a situação ainda se pode agravar mais. Se houver falta de água em nações poderosas, elas podem começar novos ciclos bélicos imperialistas, para irem buscar água onde ela ainda existe. As pessoas em desespero lutarão pela sua sobrevivência e as nações mais poderosas irão desrespeitar a justiça das nações, como antes fizeram. As novas guerras climáticas e a água são referidas num livro cujo título é Qual é a razão pela qual nos vamos matar, uns aos outros, no século XXI? Claro que, pela positiva, há cada vez mais consciência de tudo isto. A comunicação social também começa a dar mais expressão às vozes que denunciam esta situação, há uma proliferação na sociedade de pessoas que procuram alternativas ao sistema. Há um grande investimento em eco-aldeias e em formas de vida mais sustentáveis, até no nosso País, onde as aldeias do interior estão a ser repovoadas por estrangeiros que procuram um País com uma natureza preservada. Isto é bom, mas não me parece suficiente para deter o processo global de devastação da natureza. O ser humano tem a ilusão de que existe separado do Mundo, de que não fazemos parte da natureza e que podemos fazer o que nos apetecer dele.

 

Perfil
Filosofia, ética e pensamento

Paulo Borges nasceu em Lisboa, a 5 de Outubro de 1959, e é ensaísta, filósofo, poeta e escritor. Professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigador do Centro de Filosofia da universidade, ensina Filosofia da Religião, Pensamento Oriental, Filosofia e Meditação e Filosofia e Literatura.

É sócio-fundador e membro do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, membro correspondente da Academia Brasileira de Filosofia, membro Fundador da APERel – Associação Portuguesa para o Estudo das Religiões, membro do Conselho de Direcção da Revista Lusófona de Ciência das Religiões, director da revista Cultura ENTRE Culturas, cofundador e ex-presidente da União Budista Portuguesa, membro da Direcção da Associação Agostinho da Silva, ex-vice-Presidente da Associação Interdisciplinar para o Estudo da Mente, vice-presidente da Mesa da Assembleia Geral da Sociedade de Ética Ambiental.

Consultor do Observatório para a Liberdade Religiosa, desde 2015. Foi presidente do Partido pelos Animais e pela Natureza (PAN) de 2011 a 2014, tendo-se demitido em 2014 e desfiliado em 2015. É presidente do Círculo do Entre-Ser, associação filosófica e ética.

 

Normalmente, quando confrontado com situações catastróficas, o público procura bodes expiatórios. Isso também acontecerá nesta situação?
Penso que essa é uma tendência da mente humana, sobretudo, das mais infantis e adolescentes. Culpa-se sempre os outros, mas se olharmos para o estilo médio de vida dos portugueses percebemos que é insustentável para o planeta. Temos uma pegada ecológica de 3,3 que é superior ao que o planeta suporta. E nem falo da pegada dos norte-americanos ou japoneses! As pessoas têm dificuldade em reconhecer que a origem daquilo que consomem, o modo como consomem e vivem tem um impacto enorme sobre o planeta. Não procuramos consumir no comércio justo. Consumimos produtos feitos do outro lado do planeta, por mulheres e crianças que vivem em regime de semi-escravatura, consumimos artigos que, para chegarem até nós, exigem longos transportes aéreos, com enormes emissões de dióxido de carbono para a atmosfera, consumimos produtos de origem animal que contribuem para a desflorestação de grandes florestas como a Amazónia. Somos responsáveis por tudo isto!

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