Entrevista conduzida por:
Jacinto Silva Duro
Manuel Leiria
A candidatura de Leiria a Capital Europeia da Cultura(CEC) é uma necessidade ou uma consequência? Leiria precisa dela ou merece-a?
Pelas duas razões, Leiria tem um legado muito maior do que os leirienses têm consciência... há património, há agentes, há práticas, há obra milenar e pré-histórica, que justificam que receba o evento. É fundamental activar este processo de candidatura, para conseguir resultados que, neste momento, não existem por responsabilidade nossa. É necessário energizar os agentes culturais, económicos e, especialmente, políticos, para oferecer consciência global do lugar que a cultura tem no desenvolvimento de uma cidade, de um país e de um tempo. Temos andado a descurar esse processo. Pode haver até um legado histórico, mas aquilo que, verdadeiramente, motiva é o manancial de mais-valias para nós, para a cidade e região.
Há um factor agregador e identitário nesta candidatura? Há muito que Leiria é apontada como uma cidade sem uma identidade que agregue pessoas e vontades.
Do ponto de vista cultural, há uma ausência de identidade... mas o mesmo se passa com a economia e a política. Quando pensamos em Leiria, cada um de nós, olha apenas para uma parte da cidade. É verdade que ainda não temos um jardim, que o primeiro grande museu abriu há pouco e aquilo que se fez não foi feito como parte de um processo ponderado e participado. A identidade existe, mas é anónima para a maior parte de nós. Não temos consciência do que está a acontecer ao nosso lado. Por exemplo, nos primeiros 30 dias de trabalho neste projecto, eu e a equipa da Musicalmente, estivemos a perceber quem somos, onde estamos e o que estamos a fazer. Estamos a ponderar um território que se quer mais amplo do que a cidade, entre Castanheira de Pera e Torres Vedras, e entre Tomar e Nazaré... Ainda só reunimos com as instituições de Leiria e demos conta que elas não sabem o que as outras estão a fazer. A partir do momento em que colocarmos cada uma delas em contacto e com o que estão a fazer, a identidade virá ao de cima. Há elementos na cidade que são mais identitários do que a nós, que somos de cá, nos parece. Parece-me que a maior ausência é de alguém que lidere os processos. Há múltiplos projectos que, individualmente, são muito bons, mas que não se juntam para potenciar o que têm de melhor.
Quais serão as linhas mestras da candidatura?
Há três ideias centrais. Em primeiro lugar, não estamos a pensar apenas na cidade e, por isso, passámos a designar esta candidatura como Rede Cultura 2027. Quando se fala em matérias frágeis como a cultura, se não associarmos os poucos agentes e fundos nacionais e comunitários, dificilmente poderemos construir algo sólido. A primeira ideia passa por potenciar os agentes distintos de um território amplo, mas juntando, já este ano, o que cada um tem, podemos ter um resultado muito superior àquilo que cada um faz sozinho. Em segundo lugar, queremos falar com as pessoas, uma a uma. Nada se faz sem a participação de todos, de nada adianta haver uma ideia extraordinária se as pessoas não se sentem motivadas e envolvidas. O que estão a fazer muitas das cidades que competem para serem CEC? Contratam uma agência de comunicação, fazem um estudo de mercado, arranjam um lema, fazem uma campanha e vendem uma ideia para a candidatura. Não pode ser assim. Temos de ouvir cada uma das pessoas, saber quais são os seus sonhos, as suas experiências e vontades, porque é do somatório deste mundo de sonhos e vontades que nascerá um lema que, depois, será trabalhado ao nível da comunicação, mesmo que conduza para um caminho que nenhum de nós esperava, mas que é o nosso caminho. Isto é importante para os agentes políticos, económicos e culturais. Não se pode separar este triângulo. Por fim, a terceira ideia passa por olhar, profissionalmente, para a cultura. Temos de abandonar de vez a ideia de que a área da cultura tem menos impacto na vida quotidiana, económica e política do que outras áreas. Será preciso mudar procedimentos. Por exemplo, da mesma forma que um guarda-redes não é um ponta de lança, na cultura, existem papéis e competências muito próprias. Não se pode pensar que um vereador pode programar ou que um director administrativo possa ser director de produção. O que acontece hoje, não é por culpa ou responsabilidade de alguém, mas de um histórico de desinvestimento geral na cultura. Temos de colocar profissionalismo a todos os níveis na cultura. Isso implica planear sem ser em navegação à vista. A cultura, de todas as áreas, é talvez a que tem um investimento mais a médio e longo e muito longo prazos. Qualquer investimento tem de ser geracional. Como as coisas demoram muito tempo, não podemos pensar que devemos consumir à carta. Vem um agente com uma produção e um amigo com um artista, vem uma companhia com uma lábia mais interessante e são contratados... Não pode ser assim!
Há muito tempo que essa situação está diagnosticada e há muito que se confronta os políticos com isso e nada mudou.
A partir do momento em que o presidente da Câmara de Leiria avança com a possibilidade de Leiria concorrer a CEC,sabemos que, pelo menos, o responsável máximo do poder autárquico da cidade colocou como possibilidade este projecto. A nós, leirienses, faz falta que haja gente que venha de fora olhar para nós. Por exemplo, não sou eu quem tem o dossier da música. Quem o tem é Celeste Afonso, sob proposta do professor João Bonifácio Serra. Sendo uma área mais fácil de percepcionar na cidade, admito que não teria distância suficiente para perceber o que importa verdadeiramente e o que nos distingue. Estamos a constituir vários grupos de trabalho em cada uma das áreas; para a Leitura e para o Livro, Pensamento, Artes Plásticas e Música. Há ainda o eixo da Espiritualidade. Além disso, será que ter, numa equipa alargada, a classe política - o presidente e os restantes vereadores -, pessoas externas à cidade, outros agentes de Leiria ligados à Cultura, à Gestão, Economia, Igreja ou associativismo cultural é uma auto-estrada para a transformação? Não! É um carreirinho muito pequenino! Não podemos ficar reféns do passado. Há a oportunidade de refrescar o cenário com dinâmica nova. Hoje, não há programação e não há clareza sobre o modelo, mas há consciência disso e alguma abertura. Vamos aproveitar para que ela nos sirva para potenciar um resultado que vá além do carreirinho que se abriu agora.
Projectou o nome de Leiria através de iniciativas que colocaram a música no universo de bebés, de reclusos, de doentes terminais ou de pessoas com doença mental. De que forma conseguirá que a candidatura de Leiria surpreenda?
Neste triângulo de poder: Comissão de Projecto, Conselho Estratégico e Conselho Geral,quem define a estratégia é o Conselho Estratégico, que também integro. Entendo que toda a cultura, incluindo a mais erudita e a menos elaborada, é acessível a todos. Na minha forma de pensar a programação, não me fascinam grandes eventos com sumidades. Prefiro pequeninos eventos que transformam cada um de nós. Naquilo que me disser respeito, esta candidatura nunca terá parangonas de estádio e milhares de pessoas a celebrar, com pompa e circunstância, a cultura. Aquilo que levo da minha experiência profissional é a percepção de que a cultura que vale a pena trabalhar é aquela que interfere na vida diária de cada um de nós. Se tiver de optar por criadores, pensadores, curadores que têm uma perspectiva mais ampla da cultura ou por quem tenha uma mais elitista, optarei sempre pelos primeiros. Isso é facilitador? Não! Se fosse, não faria ópera com prisioneiros. Acredito que é possível levar a mais alta cultura a qualquer pessoa. Não podemos ter coisas só para quem tem determinado nível intelectual, que foi iniciado à cultura… ou para os que acedem ao último grito das artes plásticas contemporâneas, ao da ópera contemporânea e os mortais que ouvem Emanuel e Quim Barreiros e enchem recintos. Nada tenho contra o Quim Barreiros. Ele será invocado e poderá participar? O que importa é que o local onde isso acontecer seja claro. Jamais nos poderemos deixar levar pela ideia de que uma grande Capital Europeia da Cultura tem um "passe de mágica" que vai fazer aparecer uma cidade nova. A cultura não irá transformar nada se só tivermos uma colecção de grandes eventos e fizermos descer do castelo fogo, músicos a voar e actores a pintar os céus. Nesse cenário, não vejo como a comunidade se irá envolver e isso lhe irá interessar. O ponto de partida é reflectir sobre a identidade cultural. Temos agendados encontros entre artistas, agentes culturais e especialistas nacionais em programação, curadoria e produção, que irão ajudar a reflectir sobre estes conceitos-base. Já falei com o Gui [Garrido], d'A Porta, com o Carlos [Matos], do Entremuralhas, com a "malta" que está a trabalhar e o que acontece? Cada um está a tentar "salvar" o seu evento e não temos tempo para reflectir o que fazemos, porque acabamos todos a ter de gerir os projectos em cima do joelho!
Quando vão acontecer os encontros?
No primeiro mês de 2019, iremos ter dois encontros com convidados internacionais e nacionais, para nos ajudar a reflectir sobre o que é programar cultura numa cidade. Aí, começarão as questões de fundo e ideológicas da cultura. Mas nem sequer chegámos a esse passo. Ainda estamos no básico! Temos de pensar o que é construir uma programação cultural na cidade.
Isso já se irá reflectir na programação cultural de 2019?
Gostava que isso pudesse acontecer. Para o ano, já iremos ver algumas coisas da Rede de Cultura 2027. Vamos investir em trabalhos de co-produção entre agentes culturais do território da rede. Os grupos, as galerias, as escolas e bibliotecas, estão a ser informados de que se quiserem fazer algum projecto em conjunto com outro parceiro, nós investiremos. Queremos oferecer a experiência de que, quando trabalhamos em conjunto, nas mesmas áreas e com uma cidade vizinha, também crescemos. Não há o "melhor festival" de música, de teatro ou marionetas, há, um conjunto de agentes, pessoas ou instituições, que, ao juntarem-se para produzir em conjunto, serão apoiados. Vamos abrir um processo de candidaturas e reforçar os eventos que já decorrem na cidade. Por exemplo, se houver um evento ou projecto que, até aqui, não contemplava actividades com escolas, parcerias nacionais ou internacionais, temos de os estimular. Esse apoio nem sempre é dinheiro. Pode ser oferecer os canais para estabelecer parcerias. Em 2019, que ainda é um ano para reflectirmos em conjunto e sem pressas, já haverá programação com base neste budget.
Mencionou há pouco a extensão geográfica da candidatura e englobou concelhos, do distrito e mais a sul, e do este. Ainda na semana passada, o presidente da Câmara de Alcobaça disse que não foi contactado oficialmente e a isto junta-se uma candidatura anunciada pela Região Oeste, ou seja, do sul. Essa candidatura caiu?
Desde os primeiros encontros do grupo de missão que foi claro que Leiria iria lançar-se numa candidatura com um amplo território. A fronteira não estava definida mas chegou-se à conclusão que teria de ser, pelo menos, o território do Politécnico de Leiria, a Associação de Municípios de Leiria e, houve conversas informais com alguns concelhos-chave da região. Foi com alguma surpresa que soubemos da proposta de candidatura da CIM Oeste. Contudo, no dia 31 de Outubro, a equipa da Rede Cultura 2027, encabeçada pelo presidente da Câmara de Leiria, Raul Castro, irá reunir-se com os municípios do Oeste, e apresentar uma agenda conjunta de trabalho para 2019. Temos tido a maior abertura e interesse dos agentes culturais e municipais. Alguns municípios têm razão quando dizem não ter havido um contacto mais formal, que, infelizmente, foi sendo adiado por razões de agenda, mas sempre foi claro para o nosso grupo de missão que o território envolvia os municípios do Oeste e de Leiria. Além disso, uma das primeiras cidades a manifestar interesse em estar nesta candidatura foi Tomar, que a leva além deste eixo geográfico. Mas faz todo o sentido: temos um arco de património da Unesco, que inicia no Convento de Cristo e vai até à Berlenga. São quatro "pilares" tremendos. Um deles é o Mosteiro da Batalha, onde estamos agora. O professor Samuel Rama costuma dizer que, neste território, há um vínculo muito mais natural do que parece. Desenvolvemos a agricultura e floresta nesta região que chega a Lisboa, o que fez com que as areias do território se purificassem. À custa dessa purificação, nasceu a indústria do vidro que impulsionou, mais tarde, a dos moldes. A mesma tecnologia que serviu para o madeiramento das naus foi utilizada para o madeiramento do património da Unesco. Há muitos mais vínculos a estruturar este território do que possa parecer. Porém, neste momento, será que sei o que está a ser feito culturalmente em Castanheira de Pera e Alcobaça? Não temos essa prática, mas não a temos porque nunca a criámos. Este território é muito mais coeso do que aquilo que pensamos.
Essa reunião será um pedido de namoro ou de casamento? Fica tudo resolvido?
O encontro com a CIM Oeste é de conhecimento mútuo, tendo havido contactos, previamente, entre cidades e agentes culturais. Na verdade, este é um encontro para casamento. Há, naturalmente, dúvidas legítimas que os autarcas do Oeste querem esclar
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