Entrevista

Pedro Duro: "A presunção de inocência nunca vai estar na moda"

27 jul 2023 00:00

O advogado sublinha a necessidade de alterar algumas regras procedimentais, de modo a acelerar a acção dos tribunais, e sugere a alteração do segredo de justiça, para uma maior transparência

Pedro Duro
Ricardo Graça
Jacinto Silva Duro

Figuras como o segredo de justiça ou a presunção de inocência ainda têm lugar neste tempo actual de mediatismo?
Faço parte do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, pelo que as minhas respostas traduzem exclusivamente a minha opinião. Dito isto, a presunção de inocência é uma imposição legal porque ela não faz sentido para nós, enquanto seres humanos. É contra-intuitiva. Tendemos a desconfiar e é, por isso, que ela tem de estar na lei. Geralmente, as leis servem para nos guiar racionalmente, relativamente a muitas soluções que, para nós, são contra-intuitivas. Não é intuitivo dar a outra face ou não retaliar. Se alguém nos fizer algo, não vamos querer agir só em legítima defesa, no imediato. Instintivamente vamos querer vingar-nos à la longue. Para que o mundo funcione, precisamos de regras, para que as coisas se resolvam nos tribunais e sem acção directa. Não vamos, em retorção, bater numa pessoa que nos fez mal há 15 dias. Temos duas expressões muito populares que dizem “onde há fumo, há fogo” e “a culpa morreu solteira”. O que pressupõe a ideia, datada, de que ser solteira é mau e ser casada é bom e que a culpa é feminina. Era uma coisa má, uma mulher morrer solteira, no tempo em que este jargão foi vingando. “A culpa não pode morrer solteira.” Mas por quê? Às vezes, acontecem coisas más e a culpa não é de ninguém. Se cair aqui um meteorito, tenho de condenar o arquitecto e o engenheiro, porque, de repente, descobrimos que faltam regras que prevejam a protecção contra meteoritos? Se calhar não! Por muito que nos custe, acontecem coisas más e a culpa não é de ninguém. Reactivamente, precisamos de alguém que espie a culpa das coisas más que acontecem e, à míngua de um deus, precisamos de outras expiações que podem ser outras pessoas. Quando alguém é absolvida, ninguém quer saber o que se passou no tribunal. Vão dizer: “claro, pode ter uns advogados a quem pagou milhões, se calhar subornou um juiz!”. Vão presumir sempre o pior. Mas se for alguém da sua família ou os próprios, já dizem, “aquilo foi tão injusto”. Há uma certa ideia de que todos os outros 99% que foram a tribunal foram muito bem condenados e os que foram absolvidos deviam ter sido condenados. Os advogados estão sempre a falar da presunção de inocência porque é daquelas coisas que temos de repetir todos os dias. A presunção de inocência nunca vai estar na moda. 

E o segredo de justiça?
O segredo de justiça é necessário porque, se andarmos a dizer quem é que está a ser escutado, estamos a matar as diligências... Do ponto de vista da investigação, ele é absolutamente necessário, não nego. Só que a partir do momento em que há detenções, vai-se esvaindo. Pela natureza humana, alguém põe as coisas cá fora. Nesse momento, se calhar, as autoridades judiciárias deveriam começar a assumir que não haveria segredo de justiça, porque já sabe que as coisas vão sair a conta-gotas. Se já não afectar a investigação, mais vale ser transparente ou pensar-se numa alteração ao código, onde há partes públicas e partes que não o são. Isto porque se cria um desequilíbrio contra os arguidos, primeiro, porque o Ministério Público e a Polícia Judiciária podem fazer os comunicados que quiserem. Decidem, fazem o comunicado, dizem que buscas estão a fazer, com quem estão a falar... Segundo, não controlamos a informação que sai ou como ela vai parar à comunicação social. Terceiro, os advogados têm a limitação do segredo de justiça, mas têm ainda a limitação de não poderem prestar declarações que se traduzam nalgum tipo de tentativa de influência sobre o processo. Mas, já existe influência pública do outro lado. Se um advogado prestar declarações que violem essa regra, deve ser disciplinarmente responsabilizado. Faz sentido mantermos esta regra? Não sei se faz. Porque ela tem vários problemas. Pressupõe que os juízes não têm autonomia da vontade e que se deixam influenciar pelas vozes públicas. Faz sentido esse paternalismo? Pressupõe-se que as pessoas, coitadinhas, não sabem pensar, incluindo os tribunais, pelo visto. Mais vale ser franco e assumir as coisas. Saber-se-ia que era a posição do advogado, que é, obviamente, parcial, porque está a defender o seu cliente e depois as pessoas filtravam. Os tribunais servem o povo e todos os órgãos de soberania têm de ter escrutínio popular e de ser transparentes. E a “transparência” é cada um assumir a sua posição e não andarmos nesta dança daquilo que se pode dizer e do que não se pode dizer. O segredo de justiça é muito útil para não frustrar as investigações, mas, a partir daí, não tenho problema algum com um debate aberto, onde cada um assuma ao que vem e as pessoas que façam o seu juízo.

O presidente da SEDES, Álvaro Beleza, diz que um dos problemas que impede o desenvolvimento do País é o facto de a justiça ainda funcionar no século XIX. Em traços largos, se fosse ministro da Justiça e tivesse poder para isso, o que alteraria na Justiça?
Não mexeria muito nas leis, mas há aspectos onde gostaria de o fazer. Um é procedimental e o outro é logístico. O logístico tem que ver com os tribunais administrativos e fiscais que encravam o País. Temos muitas relações com a administração, para licenciamentos, matérias ambientais e urbanísticas e toda a ordem de coisas, que o Estado tem de regular e tem de aprovar. Quando há litígios, o País não avança, nem do lado da administração, nem do lado do particular, enquanto o tribunal não decidir – e isso pode demorar anos. Quando há litígios fiscais com a administração, também pode demorar anos e matar a liquidez de uma empresa. O que interessa a uma empresa, ao fim de dez anos, saber que, afinal, tem direito àqueles dois milhões de reembolso? Se calhar já faliu!  Para o investimento estrangeiro, saber que há este entrave, é muito desincentivador. Ninguém quer lidar com um Estado que não dá garantias de que as decisões são rápidas e os investimentos resultam. Eu tentaria criar condições para que os tribunais administrativos e fiscais tivessem mais meios e decidissem mais depressa. E isso não tem tanto que ver com leis, mas com meios tecnológicos e, sobretudo, humanos, que permitam fazer uma certa limpeza de processos. Os tribunais administrativos e fiscais são um verdadeiro cancro na Justiça. São um entrave à economia e, obviamente, à paz de espírito das pessoas. Relativamente à matéria penal, há muitas pequenas coisas que se poderiam mudar. No Código do Processo Penal, mexeria na instrução. Não vejo grande utilidade nessa fase, tal como a temos hoje. Por outro lado, faz sentido robustecer a fase de saneamento do processo antes do julgamento, onde se apreciam as nulidades e outras questões. Além disso, a instrução também cria um problema na gestão dos juízes, que levou a alterações sucessivas, contraditórias, nos últimos dois anos, relativamente às competências. O saneamento das nulidades do processo pode ser feito pelo juiz de julgamento numa fase prévia ao agendamento das audiências. 

E as questões logísticas? 
Fiz parte de uma comissão de reforma do sistema prisional que era presidida pelo professor Freitas do Amaral. Penso que se chamava Comissão de Estudo e Reforma do Sistema Prisional. As coisas não evoluíram espectacularmente nessa matéria. Houve evoluções, mas fico um bocadinho preocupado, porque também é o tipo de matérias que não tem adesão popular. Quem quer saber dos presos? As pessoas esquecem-se que querem que o primo ou o irmão se reabilitem se forem para a cadeia. Querem que reorganizem a vida e que voltem para a comunidade. Ora se, na cadeia, houver apenas castigo e agressividade, não estaremos a dar as melhores condições para que as pessoas se reabilitem. Estaremos a criar condições para a revolta, para que as pessoas se desculpem a si próprias relativamente à continuação da actividade criminosa. O meio prisional deveria ser, por excelência, de reinserção. Se não houver condições logísticas, físicas adequadas e se as pessoas não tiverem ritmos de vida lá dentro que sejam pedagogicamente estimulantes, não estamos a facilitar a reinserção social. Não estou a falar em condições de luxo – aquilo não é um hotel –, mas de coisas como promover a higiene, o gosto por si próprio e manter-se de cabeça erguida, porque também somos feitos disso. Parece que isto obriga a pensar demasiado e não é compatível com o Instagram.

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