Rui Ribeiro, natural de Leiria, estudou na Escola Domingos Sequeira antes de emigrar para o Rio de Janeiro, com 17 anos de idade. “Eu na época tinha a mania que era pintor e o ser arquitecto foi uma coisa negociada com os meus pais. Eles queriam que eu fosse engenheiro”. Chegou no final de 1968 ao Brasil (que também se encontrava sob o jugo de uma ditadura) e ingressou numa universidade federal, mas acabou por concluir a licenciatura em Arquitectura na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, já depois do 25 de Abril de 74.
De regresso a Leiria, conheceu Jorge Estrela, com quem colaborou, com outras pessoas, na organização da exposição O Saque da Cidade de Leiria, que retratou, com o apoio de imagens, a transformação do mundo rural numa paisagem urbanizada, processo que, anos mais tarde, sofreria uma explosão. “Hoje há partes da cidade que são irreconhecíveis”.
Rui Ribeiro assinou a reabilitação do Mercado de Sant’Ana (em que voltou a trabalhar com Jorge Estrela), foi autor do plano de pormenor da Nova Leiria (e de alguns edifícios, na Praça Nova) e mais recentemente esteve envolvido na concepção do Jardim da Almuinha Grande, com os arquitectos João Marques da Cruz e Frederico Soares.
Está, actualmente, com o projecto de adaptação do antigo edifício da cooperativa agrícola para acolher a assembleia municipal, junto ao rio Lis.
Leiria tem fragilidades que potenciam a ocorrência de cheias?
Tem, e com um grande perigo. Estes rios, Lis e Lena, são os chamados rios perigosos, porque são rios que não têm grande caudal, mas explodem de repente. Já assisti ao rio Lis a limpar tudo, isso pode voltar a acontecer. Aliás, havia um projecto que não foi feito, na fase do Polis, que fez o plano de pormenor de Santo Agostinho, em que eles propunham, e na minha opinião é uma coisa que deve ser feita, uma grande bacia de retenção. Acho que é, ainda hoje, um projecto muito importante para Leiria.
É necessário agir?
Há alterações climáticas, mas sempre houve estas inundações. O rio espraiava aqui. Até ter sido feita a regularização do Oudinot [engenheiro francês que trabalhou em Leiria no século XVIII], o rio espraiava. Também temos de perceber que não é possível dimensionar pluviais para uma queda de água daquelas repentinas. Agora, há medidas a tomar no rio Lis. Essa grande bacia de retenção era muito importante, acho que é um dos projectos em que a Câmara devia voltar a pegar. Até porque cria um grande espelho de água na cidade, o que é interessante. Ainda por cima, com aquele morro, que é um dos morros mais bonitos e mais esquecidos de Leiria, que é o da Nossa Senhora da Encarnação. Quanto a mim, em termos de arquitectura, se esquecermos o Castelo, o morro da Senhora da Encarnação é das coisas mais bonitas de Leiria e a escadaria é, para mim, o objecto arquitectónico mais bonito de Leiria, uma obra de arte.
Que pensamentos lhe surgiram quando viu o Jardim da Almuinha, de que é co-autor, ocupado por carros durante a última edição do Leiria Sobre Rodas?
Bem, não é agradável, aquilo não é propriamente para automóveis. Aliás, o Jardim apareceu para expulsar os automóveis. Mas, ali no Jardim, a grande preocupação que temos, também o João Marques da Cruz e outras pessoas, é o problema da manutenção. Estas coisas, jardins, espaços públicos, precisam de muita manutenção e em Portugal não se faz manutenção como deve ser.
Põe em risco a ideia para o Jardim?
Pode pôr, a médio prazo. Se não se cuidar o sistema de rega, podemos ter problemas, principalmente, nestes primeiros dez anos. Depois, o ecossistema acontece. E está a começar a acontecer. Mas, realmente, o sistema de rega nos primeiros anos é muito importante.
Que opinião tem sobre o novo regulamento do centro histórico de Leiria, que alguns arquitectos acham que é mais permissivo nas regras de construção e mais orientado para a utilização do automóvel?
Na questão dos centros históricos existem pelo menos três atitudes padrão. O pessoal que vem da história, da arqueologia, que defende quase a preservação integral. Esse modelo, em determinados objectos, é importante e é necessário, mas não é no todo, porque isso pode levar a uma situação que é termos uma cidade museu, que até pode ser muito bonita, mas não vive lá ninguém. É o caso de Óbidos. Depois, há o pessoal do contextualismo, que acha que há coisas que devem ser preservadas, que tem de se perceber que alguma população tem de ficar, outra tem de sair, e perceber que a cidade são camadas sucessivas. Daí, é necessário ter o contexto, e no contexto, ter o contexto histórico, habitacional e principalmente arquitectónico. A qualidade do espaço público nos centros históricos é muito importante. E depois o que eu chamaria o terceiro movimento que é o famoso bota abaixo, que é o pessoal que diz “isto é tudo uma velharia, cacos, só estorva, não consigo passar com o meu automóvel”. Esse movimento teve épocas em que foi maioritário. E com arquitectos importantes. O Ernesto Korrodi fez um plano em que propunha a demolição parcial da Rua Direita. Há fases e épocas. Penso que neste momento, com o que sabemos, porque hoje há mais informação, o ideal seria uma fusão dos três elementos. Numa mesma rua, provavelmente, estas três posições são necessárias.
Faz sentido que a Rua Direita continue a ser atravessada por carros?
Isso é uma coisa completamente disparatada, continuarem os automóveis. Nem percebo como. Quando se fez a exposição de 1977 [O Saque da Cidade de Leiria] nós propusemos fechar a Praça [Rodrigues Lobo] ao trânsito. Íamos sendo linchados. Juntaram-se os comerciantes e houve mesmo tentativas de agressão física. Se bem que, agora, andam lá sempre a pôr carros, acho um absurdo, mas isso, também, a Câmara tem muita culpa, parece que só pode fazer eventos aqui. E devia recuperar a Praça. Pavimentos todos novos, devia ser toda recuperada. Costumo dizer uma coisa que alguns arquitectos já aceitam: uma praça maior não tem árvores. Não faz sentido ter árvores. Quando aquelas magnólias crescerem, deixa de se ver a Praça. Para os sombreamentos, existem os chapéus de sol e outras formas. Outra coisa, é arranjar zonas de pavimento confortável.
Leiria está bem posicionada nos temas da mobilidade suave e da construção sustentável?
Estamos com algum atraso. Falta executar um plano de mobilidade na cidade. Tem de se auscultar primeiro, conversar, mas há coisas que têm de ser decididas, mesmo que não sejam simpáticas, mesmo que tirem votos.
Há soluções para dissipar a pressão do trânsito automóvel sobre o centro da cidade?
Têm de fazer, realmente, um plano. A segregação do automóvel de uma forma artificial não sou favorável. A cidade também é para ser vista do automóvel. Têm é de ser estudadas as radiais, as grandes vias de penetração, há receitas, há formas de estudar e fazer. Normalmente, as pessoas reagem mal à mudança, isso é natural. As coisas têm de ser cada vez mais explicadas, tem de haver cada vez mais, mesmo dos projectistas, a parte pedagógica e a parte de comunicação ao público, mas também é muito mais fácil fazer isso hoje com os meios que há.
No urbanismo e no ordenamento do território, quais são os principais desafios em Leiria?
Um pouco os mesmos que para o resto das cidades portuguesas. Voltar um bocadinho ao conceito da cidade histórica, ou seja, voltar a um bocadinho antes do modernismo, ou do movimento moderno. O funcionalismo e o Le Corbusier e todos esses movimentos da Carta de Atenas tinham um pressuposto que era a especialização da cidade, a separação das funções. Aqui trabalha-se, ali dorme-se, ali divertem-se. Foi o que se fez em todas as cidades e em Leiria a mesma coisa. O que é que isso provocou? A sobrecarga brutal das redes de transportes, a ponto que não há solução.
Temos de caminhar para a ideia de bairro, novamente?
Da cidade multifunções. A maioria da indústria, que não é poluente, não precisa de zona industrial. Uma cidade mais integrada, onde as pessoas devem trabalhar, viver e divertirem-se no mesmo bairro. Isto é o conceito das cidades históricas. É a cidade dos 15 minutos, que hoje é o grande movimento em todo o lado.
Que importância tem a expansão do Polis, que já foi anunciada?
O programa Polis foi um grande programa, alterou completamente a visão das cidades em Portugal, para melhor. Vai ser um projecto muito complicado de gerir com o Ministério da Agricultura. Portugal funciona muito por capelinhas e conseguir ultrapassar isso nem sempre é fácil. Vai colocar dois grandes conflitos, com o Ministério da Agricultura e com o Ministério do Ambiente. E os dois se acham donos da água do rio. Agora, é um projecto aliciante. Poder-se ir a pé ou de ciclovia até à foz do rio ou até à nascente. Até porque passa em zonas lindíssimas e permite que as pessoas nesse percurso vejam uma coisa que já nem sabem que existe, que é a agricultura.
Os seus objectivos como arquitecto foram mudando ao longo dos anos?
Sim, sim. No princípio, no gabinete em que trabalhei no Rio de Janeiro, com o arquitecto Roberto Bastos Cruz, os três que trabalhávamos com ele, a nossa ideia na época era muito de pintores, só queríamos desenhar. Isso foi mudando bastante, ao longo dos tempos. O arquitecto tem uma desvantagem: está muito dependente da encomenda, da qualidade da encomenda. O nosso sucesso ou insucesso tem muito a ver com a encomenda. Se temos uma má encomenda, é muito complicado. E houve um período em que a encomenda pública era das piores, eram coisas realmente de muito má qualidade.
Orçamentos baixos?
Baixos e má qualidade de projecto. Isso mudou bastante. Hoje, têm um problema: estão a fazer concursos e ninguém concorre. Tanto que as autarquias estão todas as subir os preços dos concursos, se não ficam com os concursos vazios.
O seu pensamento como arquitecto mudou?
Mudou e foi tendo um percurso muito variado. No princípio, uma reacção ao moderno – é sempre normal matar o pai. O pós-modernismo é uma reacção ao moderno e é um bocado a minha geração que faz essa reacção. Existiam várias correntes dentro do pós-moderno, eu estava mais ligado aos italianos, ao Aldo Rossi, ao contextualismo. Depois, voltei a recuperar o moderno, principalmente o modernismo, porque há uma diferença entre o moderno e o modernismo. Cassiano Branco, quase não se fala nele, é um arquitecto fabuloso e é um homem do modernismo, com uma qualidade extraordinária.
A arquitectura, para ser considerada boa arquitectura, tem de ser esteticamente apelativa?
Sim, mas há boa arquitectura em todos os períodos. Tem de ser bela. O feio pode ser belo.
Estamos a falar de harmonia.
A harmonia é fundamental. Na arquitectura, na música, em tudo.
A arquitectura é, ou não, arte?
É uma arte aplicada e tem a ver com a música, mais do que com a escultura. Há mesmo um crítico que diz que a arquitectura é música cristalizada. E é. Composição, o tema, matemática, tudo. A coisa mais parecida com a arquitectura é a música. Agora, a arquitectura é uma arte pública e como arte pública é abrigo, tem essa componente prática.
Um ateliê como o seu é uma ideia que tende a desaparecer?
Sim, hoje começa a haver grandes empresas de projectos, em Lisboa isso já é bem evidente. Está a começar a luta de criar um sindicato dos arquitectos, porque neste momento esses grande gabinetes de Lisboa praticam a escravatura. Os miúdos ganham miseravelmente, são explorados de uma forma infame. E não têm ninguém que os proteja, porque a Ordem não pode.