Viver

Arte xávega, a tradição que faz uma praia

4 ago 2021 16:11

Vieira de Leiria | De Abril a Outubro, sempre que o mar permite, temos três companhas dentro de água, onde os homens do mar lançam uma rede que une uma comunidade, navegando assim na corajosa tentativa de salvar um costume que nos fascina

Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Ricardo Graça
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Ricardo Graça
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Ricardo Graça
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Ricardo Graça
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira
Arte xávega na Praia da Vieira

Uns vão ao espaço fechados em milhões de dólares, outros vão ao mar, descalços num barco de madeira.

Os primeiros auto-prescrevem testosterona e esbanjam recursos evocando o futuro, os segundos, lançam-se noutro imenso azul de peito feito para defender uma tradição que lhes corre no sangue, por uma ideia de praia, por um sentido de vida, o seu, que não existe sem sal na pele.

Na Praia da Vieira são três as companhas de arte xávega que se aventuram na faina, se o mar permitir e a meteorologia deixar, todas as manhãs, de Abril a Outubro, com o raiar do dia, que segundo os entendidos é por volta das seis da manhã.

Há um primeiro barco meia-lua que se entrega à esperança de pescado, essa companha, nesse dia, fica com o melhor lugar na lota, que é como quem diz, o primeiro que os fregueses veem ao chegar, os outros dois barcos avançam com meia hora e uma banca de intervalo.

No dia seguinte rodam entre si num sentido de justiça comunitário e elementar que já não se usa no mundo dos negócios. A partir do segundo lance já passamos a um salve-se quem puder mais comum e os barcos entram dentro de água quando quiserem ou puderem.

É um comunismo de manhã e um liberalismo à tarde, digamos. Já chegaram a entrar no mar seis vezes ao dia, quando ele era generoso, hoje, se forem três vezes é porque as redes se enchem, o peixe se vende e o dia é amigo. 13:30 horas.

Foto: Ricardo Graça

Cinco homens arrumam-se por entre cordas e redes meticulosamente dispostas a abandonarem o barco num mergulho contínuo.

O tractor de Daniel Nunes, um dos sócios da empresa, é manobrado habilmente para levar as cores vivas do Viking até dentro de água.

Atravessada a pequena montanha-russa artesanal gerada pela ondulação que, para bem da manutenção do almoço no sítio, era mansa, a corda vai deslizando desenvencilhada pela ré para o Atlântico sob o olhar preventivo e as mãos sabidas de Paulo do Sul e Toino que, da galera, encaminham o emaranhado cientificamente direitinho para a água.

Rui Mira, o mestre da embarcação, capitaneia a velocidade, o rumo, os homens e o barco. Mar adentro.

O motor só é silenciado num ponto morto para Bago, sob o seu chapéu coçado do Benfica, levantar a questão de uma licença que só necessita de ser revalidada daqui a quatro meses.

“Opá tens tempo para isso, isso é só lá para Dezembro” dizem os companheiros. Temos aqui um exemplar raro de português também no que diz respeito a prazos burocráticos.

Com os seus 75 anos de vida, 63 de pescador e três naufrágios, nascido com sangue de pescador, vivendo esta vida desde o tempo “dos remos e da força bovina para puxar as redes” já é, por mérito ou acaso das circunstâncias, um português fora do comum, se ainda acrescentarmos o facto de ser dos poucos na praia com arte para reparar as intrincadas redes que arrastam o peixe para fora água, Bago entra directamente para a categoria de monumento humano.

Desta vez lançou-se a rede a dois quilómetros da costa.

Tudo nesta arte tem um pouco de fé, “nunca se sabe onde é que o peixe está” diz o mestre.

“Hoje era bom que desse carapau” arremata Paulo do Sul, “era bom que desse peixe, um peixe que o mercado procure” responde Victor atrás dos óculos de sol. Os mercados até na imensidão do mar ditam.

“Ou então uma sereia! Meio peixe, meio baleia” alguém brinca. “Se de manhã o mar não foi generoso perto da costa tenta-se mais longe”. Os homens agitam-se, a rede é lançada e o barco esvazia-se de toda a mestria de arrumação que lhe preenchia o chão.

Meia volta e estamos no caminho de regresso. A tripulação desfruta do silêncio, do mar, do vento e do destino que sabem seu. A proa vai tocando e vincando o azul ondulante.

“É pena os golfinhos hoje não aparecerem”, “pois é”, e voltam a contemplar a natureza virados para o mar e para eles próprios.

Em que pensam? Na existência? Nas contas? Está tudo no mesmo rosário.

Chegamos a areia firme, os homens tiram os coletes e as t-shirts e ligam as cordas às roldanas mecânicas que substituíram as vacas que vinham da vila para alombar com as redes do pescado.

O mestre Rui Mira, também ele sócio da companha, verifica se as cordas estão a regressar direitinhas. Paulo do Sul, puxa mais um cigarro e marreca-se dentro da galera do Viking para deixar uma outra rede, das três que a companha possui, pronta e orientada para o próximo lance.

Chega um outro tractor para puxar a outra ponta da rede, vão-se aproximando com o enrolar da corda, os movimentos duplicam-se distribuí- dos pelos “doze ou treze homens”, uns arrumam, outros puxam e Bago verifica, sentado na areia, possíveis danos na rede. “Já fomos uns vinte cinco, agora somos só estes”, diz Daniel.

“Já não há homens para isto”, “não estão disponíveis para esta incerteza, para não saber o pouco que vão ganhar… daqui a uns anos isto morre”.

Queixam-se, basicamente, todos. A vida aqui não tem contrato, é precária.

Talvez vá ficar tudo bem, rapazes, talvez as modas passem e se invista nos factores de identidade realmente capazes de diferenciar e potenciar territórios. Fé, meus caros, fé.

Em média, os pescadores conseguem mensalmente pouco mais do que um salário mínimo. No Inverno, têm de dedicar-se a outras actividades

Mestre Mira, enquanto vigia o regresso da rede destrinça as contas da faina. “Do que o mar dá, um terço é tirado para o lado. Esse terço só é distribuído no final da época de pesca”, ou da safra se quiserem falar no dialecto da praia.

“Desse terço, 40% vai para os proprietários e 60% vai para o pessoal”. Os outros dois terços são dividos semanalmente, e variam consoante o que vem à rede, o seu valor e a procura.

“Em média tira-se pouco mais que um salário mínimo”, a sazonalidade é outro dos entraves à atractividade para esta arte. “Como isto só dá no Verão, a maior parte do pessoal no Inverno dedica-se a outro tipo de pesca”, a chamada rede ameijoeira, que apanha uns robalos incautos na zona de rebentação. Há mesmo qualquer coisa no mar, este pessoal não se consegue afastar dele.

Se o lance for muito proveitoso, Daniel, liga aos seus contactos na distribuição ou para algum dono de restaurante que se interesse por um peixe mais “mignon” para uma qualquer quadrilha de abastados se deliciar. Após hora e meia a puxar ela lá sai.

A azáfama acentua-se, puxa a corda, entra dentro de água, salta, vai para o outro  lado, força, puxa! Finalmente estamos diante do que o mar nos ofereceu hoje. Infelizmente, pouca coisa. A pescaria foi fraca.

Umas raias, uns peixitos, meia dúzia de carapaus, um choco, um ruivo e pouco mais. As crianças, alheias a estes assuntos economicistas, continuam a correr para a rede maravilhadas pela magia desta arte, pegam no peixe miúdo que se solta e deslumbram-se ao levá-lo para a liberdade do mar dentro de um balde pintado de super-heróis e salvação.

As pessoas não conseguem evitar sair das toalhas e apreciar de bem perto toda esta dança. E isso também é um motivo de orgulho para estes homens do mar.

Os peixes lutam pela vida, a arte xávega, por outro lado, sobreviveu a mais um dia. Divide-se o pescado maior logo ali na areia sob o voo oportunista de um bando de gaivotas, o restante é puxado dentro de um atrelado e caixas e é divido já na lota. Missão cumprida.

“Olhó peixe fresquinho!” Tão fresco que ainda salta quando os clientes se aproximam.

Foto: Ricardo Graça

O último lance é feito na esplanada da Gina, logo ali ao lado da lota, “o sítio do melhor do peixe frito da praia”, “a minha sogra cozinha muito bem, mas este… opá! este é melhor, é mais estaladiço” diz um que para evitar problemas familiares não convém identificar, enquanto se lançam as mãos a umas fresquinhas e se contam outros tempos, outras pescarias, salvando assim as histórias do mar e a tradição desta praia e deste povo.

O mestre, entre um sorriso puro e satisfeito deixa um: “ foi bem bom, ninguém se magoou e as redes não se estragaram” relativizando a míngua da tarde. É esse o espírito! Digo eu, que nada sei e que, de momento, só quero que o futuro salve esta arte e me traga um arroz de tomate malandro e digno de tamanha oferenda.