Opinião
A lenda que criou um mosteiro
Falamos de lendas e de histórias e insurgimo-nos quando a lenda toma conta da realidade
Nas longas conversas que à hora do almoço tenho tido com o sr. José Travaços, aqui na Batalha, para além de admirar sobremaneira a sua sabedoria, a sua integridade e humanismo, a sua educação e cordialidade e o respeito que sempre demonstra pelo outro e pelas suas opiniões, verifico que estamos de acordo em muita coisa, até na forma como tentamos perceber o nosso passado.
O Sr. Travaços insurgindo-se, com razão, contra quem pouco nos enaltece, ou pouco fala do que fomos capazes de construir enquanto povo e nos deve orgulhar; e eu também, com a minha razão, no mesmo princípio, criticando os que tentam apagar da nossa História algumas das nossas fraquezas, debilidades e fracas acções.
Falamos de lendas e de histórias e insurgimo-nos quando a lenda toma conta da realidade.
Porque a Batalha dá motivo para conversa. A Lenda da Abóbada, de Alexandre Herculano, por exemplo, passou por verdade histórica a sucessivas gerações de portugueses.
Bem estruturada e literariamente irrepreensível, reconfirmada posteriormente no ideário do Estado Novo, o que ali é descrito, com personagens históricas reais, é verosímil e podia ter acontecido.
Porque há lendas ou narrativas efabuladas que se podem legitimar pelo seu interesse pedagógico e importância formativa em determinadas idades. Este é o caso.
Para muitos, o interesse pelo passado e pela História começa com a emoção de uma narrativa, mesmo que inventada.
E para muitos miúdos e graúdos, até à minha geração, a História do Mosteiro da Batalha foi, em grande parte, a história da Lenda da Abóbada e do sacrifício de Mestre Afonso Domingues na “sua” Sala do Capítulo.
Mas continuar a acreditar noutras lendas, apesar da sua inverossimilhança e irracionalidade, deixa-nos aborrecidos. Recusar o que a ciência, a investigação ou evidência confirmam é procurar o obscurantismo.
É como acreditar que a escolha do local para a construção do Mosteiro de Santa Maria da Vitória foi mesmo decidida quando D. João I, em pleno campo de batalha, atirou uma seta ao acaso.
E onde ela foi cair, dois quilómetros além, ali mesmo mandou construir o seu mosteiro. Na realidade, o que me parece que a ambos faz impressão - e não só nos assuntos que dizem respeito à História -, é a permanência de um certo obscurantismo, seja ele qual for.
Ofende-nos perceber que demasiadas vezes a fraqueza da racionalidade do conhecer se subjuga à crença cega, que recusa compreender. E isso é como regredir, acarretando forças tenebrosas.
É como acreditar que não houve evolução humana, porque os textos sagrados só falam de Adão e Eva, ou ainda que é o Sol que gira em volta da Terra, ou que a Terra é plana (e todo o mundo científico nos engana mostrando-a redonda), ou que o Homem nunca chegou à Lua, tudo não passando de uma encenação fabricada em estúdio…
Parece-me que ambos implicitamente achamos que nada há pior que a ignorância.
Pior, talvez, só a soberba de pensarmos que tudo sabemos.