Opinião
A madrugada que esperávamos
À tarde, confirmada a Revolução, já andávamos em alegre convívio nos páteos das meninas
I - Em 74 éramos um país pobre.
Como se pode ter nostalgia desses tempos, a não ser do bom tempo que foi ser criança e adolescente?
Em 74 a minha aldeia, a Opeia, já tinha electricidade, é certo, e a estrada já estava finalmente meio alcatroada.
Alguns de nós já tínhamos televisão, mas parece-me que o tractor do José “Russo” continuava a ser o único existente, cada vez mais solicitado à medida que iam desaparecendo as juntas de bois.
Em 74 este era um país cinzento, embora um pouco mais claro, se o comparássemos com 10 anos antes.
Não que eu me possa queixar. Nunca passei fome, como outros, nem nunca me saturei de só comer broa porque o pão era em abundância.
Sardinha e chicharro frito só quando queria (e porque gostava!) e muitas vezes me deliciei em casa do Rogério, um dos meu vizinhos e amigo de infância, com a sopa que a sua mãe quase diriamente tinha que fazer para alimentar sete filhos (porque três deles tinham abalado cedo para França) - a sopa grossa com batata, couve, feijão vermelho, um pouco de massa e um naco de carne de porco entremeada.
O Rogério, em troca, deliciava-se com as sopas finas, de legumes passados, que se faziam em minha casa…
Nem nunca andei descalço por falta de sapatos ou botins, mas não esqueço alguns miúdos a caminho da escola a partirem as poças de gelo com os pés nus…
Desde os anos 50 que em minha casa já havia uma casa de banho, com banheira e água encanada, embora numa aldeia não se dispensasse a retrete no pátio.
E um luxo: folhas de papel de jornal em abundância, cortadas à medida.
As camas iam tendo melhores colchões, substituindo os muitos antigos que ainda eram cheios com “camisas” de milho.
E as noites, nesses anos 60, ainda eram alumiadas pelos candeeiros de petróleo, petromaxes e candeeiros a carboreto…
Nesses inícios dos anos 60, um dos poucos automóveis da aldeia era o do meu pai.
Um Ford Taunus, que se ia abaixo na rotunda do sinaleiro e até obrigava o próprio sinaleiro a empurrá-lo para que pegasse de novo.
Mas depois os Agostos começaram a encher-se de carros de matrícula francesa e de “ça va, non” e “fait atention”.
E sempre em todas as festas de Verão, ao longo do dia, nos altifalantes da torre da capela dos Soutos, podíamos ouvir o Conjunto Maria Albertina a cantar, pela enésima vez, o “Longe da terra natal, lá vai vivendo o emigrante…”
(Nesses anos morreram na guerra em África dois rapazes da minha aldeia, ambos em “acidentes”…)
II – No início de 1974 o meu pai comprou o “Portugal e o Futuro”, do General Spínola, e logo a seguir o “golpe” das Caldas anunciou mudança.
Nesse dia de Abril, o de 25, soube da revolução quando cheguei ao liceu.
Ainda de manhã, atrás das grades, vimos passar dezenas de carros militares em direcção a Lisboa.
Algo mudara, mesmo. O reitor, em contido nervosíssimo, andava de de um lado para o outro a falar em surdina; e o chefe dos contínuos, que sempre disseramos ser da PIDE e cujo nome esqueci, sorria-se para todos nós, pela primeira vez desde que o conhecíamos.
À tarde, confirmada a Revolução, já andávamos em alegre convívio nos páteos das meninas.
A liberdade tinha chegado!