Opinião

A merdificação digital da inteligência

12 dez 2025 11:24

Desengane-se quem pensa que o objectivo de uma rede social, ou de qualquer outra plataforma digital, é o de promover a verdade ou a diversidade

Sim, engelhemos o nariz: Cory Doctorow, escritor e crítico canadiano de tecnologia, designa a deterioração da qualidade do serviço das plataformas tecnológicas de “enshittification” (palavra do ano 2023 para a American Dialect Society), termo de difícil tradução, mas que define o processo pelo qual as plataformas digitais se degradam deliberadamente.

Nunca um neologismo foi tão apropriado, de significado tão claro e pertinente para as nossas circunstâncias, tornando-se mais do que uma mera palavra da moda, passando a definir toda uma conjuntura. A simples pesquisa no Google torna-se “merdificada”, exibindo-nos anúncios e links de produtos, em vez de resultados relevantes de sites ou fontes credíveis.

A tão proclamada Inteligência Artificial (de)generativa, avança para a bizarria, pois para manter o nível de desempenho da «inteligência» nas respostas dos seus chatbots, os utilizadores pagam versões “premium”, truque clássico de fidelização à causa capital. A inteligência adquirida assegurada pelo direito de admissão à cobrança.

A acefalia na geração dos nativos digitais com interesse económico induzido. Os ecossistemas fechados retendo os utilizadores, controlando o fluxo da informação, optimizando lucros. E o algoritmo a comandar o livre arbítrio alojado na máquina da decadência: distopia ou capitalismo da vigilância?

Desengane-se quem pensa que o objectivo de uma rede social, ou de qualquer outra plataforma digital, é o de promover a verdade ou a diversidade, ou o de potenciar o bem-estar do utilizador. A necessidade, puramente mercantil, acaba por ter consequências políticas profundas: toda a força produtiva é transformada em ferramenta de dominação, degradando a esfera pública e o bem-comum.

Serão os Estados capazes de criar medidas como a reintrodução da concorrência, a quebra dos monopólios digitais, o direito à portabilidade de dados, ou a legislação e controlo firmes no uso das plataformas digitais por parte de menores? A merdificação da internet conspurcou-nos a inteligência, turvou a atenção, emporcalhou os comportamentos e a imaginação.

Estamos atolados no esgoto digital que se afasta das necessidades, fermentando em práticas predatórias. “E pergunto: por que nos ensinaram essa merda de sermos humanos? Seria melhor sermos bichos, tudo instinto. Podermos violar, morder, matar. Sem culpa, sem juízo, sem perdão. A desgraça é esta: só uns poucos aprenderam a lição da humanidade.” (Mia Couto, in «O Último Voo do Flamingo»).