Opinião
À noite dança-se o tango
É preciso entender o infinito para explicar a uma criança o que é a poesia
É de madrugada e ainda muito do sol há de aquecer esta calçada por enquanto luzidia de orvalho.
O taxista está no seu posto de sempre. Sentado, o peso dos ombros apoiado nas mãos que rodeiam o volante, olhar perdido em frente.
Um olhar como quem olha para lado nenhum. Apenas órbitas quedas e silenciosas. Inexpressivas. Olhos abertos num olhar para dentro.
Por entre os edifícios há uma nesga de paisagem. Outros edifícios lá muito longe com nesgas entre eles.
Se alinhadas talvez o taxista conseguisse vislumbrar uma nesga do infinito que dizem estar lá, mas que o pensamento não enxerga.
Fica-se pelo pensar nas coisas terrenas. As havidas e as haver, as que se tocam e as outras de pensar apenas, coisas que existem, mas que são fumo da mente.
Vida-cadela. Nem um cliente. Uma bandeirada que fosse para estrear a manhã.
Ao menos até ali, ao hospital, não que eu deseje mal a ninguém, mas enfim, dava para pagar a bica que me está mesmo a apetecer e o raio do gajo nunca mais chega para abrir o café.
Está rico! Deve ser.
Ao menos já não precisa de vir para aqui quando toda a gente ainda está a dormir, ter que soltar-se do morno das coxas da mulher para dizer bom-dia sempre com bom modo que os clientes são os de sempre e repetem-se nos dias e nas saudações.
A menina da Central hoje também está muito calada. Também tem umas coxas de encher o olho.
Ainda ontem, quando fui entregar a folha dos serviços, tinha a perna traçada por baixo da secretária e dava para ver.
Mas aquilo está lá muito longe. No infinito. Só o patrão tem os braços tão compridos que consegue lá tocar.
A calçada da Praça ainda não aqueceu que o sol ainda está abaixo do telhado dos prédios.
Só além, na entrada maior o sol entra rasante. Um corredor de claridade.
É por ver o orvalho na calçada que a mãe vestiu um casaquito ao filho.
Mais logo, quando o for buscar à escola virá enrodilhado na mochila entre livros e cadernos e pontas de lápis-de-cor perdidas por ali.
Passos miúdos e rápidos que para ir dali à escola e chegar à loja antes do patrão é preciso quase que correr.
O gaiato é que não está pelos ajustes dessa pressa matinal. Quer olhar cada coisa que vê.
Ainda não o sabe, mas já pressente que precisa compreender as coisas que se tocam, as coisas onde pode chegar e por isso trava a mão da mãe para conter-lhe a pressa do corpo e dos afazeres.
Porque está aqui a estátua? Para a Praça ficar mais bonita.
Quem é este homem? Um poeta. O que é um poeta?
E a Praça já não é Praça. Agora só nesgas entre os prédios e que são ruas que vão dar a outras ruas que desaguam noutras e essas noutras ainda.
Até ao infinito, porque é preciso entender o infinito para explicar a uma criança o que é a poesia.
Logo à noite quando as cadeiras e as mesas do café da Praça não tiverem préstimo e o orvalho começar a dar brilho à calçada, ele vai passar por aqui a caminho da casa acanhada e solitária.
Ela, gaiato a sonhar que quando for grande vai ser poeta com direito a estátua, vai sair apressada para ir despejar o lixo.
Vão tocar-se no infinito do olhar do outro e vão dançar o tango.
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990