Opinião
A Queda - Para o Tó
O Tó habitava uma espécie espelho em que a minha mãe se via em parte reflectida e que resultava numa cumplicidade que eu como filha nunca conseguiria compreender ou alcançar
“Enquanto não souberes morrer e voltar à vida, não passas de um viajante arrependido nesta terra escura.” - J. W. von Goethe
OTó era um rapaz bonito. Louro, altíssimo, com as veias e a expressão a transbordar de verdade e vida e uma voz que enchia qualquer local onde estivesse.
Encontrava-o muitas vezes pela cidade quando, de braço dado com a minha mãe, cumpria a rotina habitual de uma adolescente a viver num meio provinciano no início dos anos 80.
O Tó era um dos poucos rapazes jovens com quem a minha mãe conversava demoradamente. Uma amizade antiga entre as famílias a que ambos pertencíamos introduzia uma espécie de ternura nesses encontros, que eu testemunhava em silêncio paralisada por uma timidez que me abandonou muito tardiamente.
As conversas que mantinham transcendiam o meu entendimento do que os unia e que não se traduzia apenas por palavras. Também por gestos, olhares e por um repetido abraço de despedida.
Desses encontros a minha mãe regressava mais silenciosa e eu intuía que o Tó não era apenas o filho dos seus grandes amigos. O Tó habitava uma espécie espelho em que a minha mãe se via em parte reflectida e que resultava numa cumplicidade que eu como filha nunca conseguiria compreender ou alcançar.
Continuei a ver o Tó pela cidade e a ternura com que a minha mãe o olhava e sempre lhe falava, permaneceu até ao dia da morte dela.
O Tó ‘caiu’ a certa altura. As suas veias e expressão continuaram transbordantes de verdade e vida e a sua voz tonitruante a encher qualquer local onde entrasse. Mas a isso juntou-se o lado baço dos dias, a decepção e a consciência do preço a pagar pela transparência e a verdade. Pouco tempo depois deixei de ver o Tó. A minha mãe ia sabendo dele através da sua família, sólida como poucas.
A minha adolescência terminou e rumei à grande cidade com todos os sonhos que uma rapariga de província transporta para o lugar em que acredita poderem realizar-se. As visitas ao chão da infância começaram a rarear. Nunca mais vi o Tó.
Nas vielas desse “admirável” mundo novo que são as redes sociais reencontrámo-nos há uns anos. A minha timidez sucumbiu às regras de sobrevivência impostas pela metrópole e a minha mãe já partiu.
Não sou herdeira desse entendimento raro que os uniu, mas voltar a ‘vê-lo’ depois da vida ter feito o seu trabalho também comigo, aproxima-me da compreensão das razões pelas quais esses encontros nas ruas de Leiria ainda estão tão vivos na minha memória.
Falamos esporadicamente. O Tó pede-me sugestões de livros e as nossas conversas alimentam-se frequentemente de uma paixão mútua por queijo.
A reserva do entendimento íntimo que o ligava à minha mãe permanecerá para sempre oculto. Talvez o que agora emoldure a nossa madura amizade seja a clarividência de que a hipótese de queda presente em todos nós, tão vulnerável que é à sorte ou ao azar que nos calha nos dias, faz da ternura o lugar onde nos sentimos em casa.