Opinião
Aprender a ler, cães rafeiros e andas de madeira
Num tempo em que dislexia e hiperactividade eram conceitos desconhecidos no universo escolar, o João foi um dos casos exigentes e desafiantes com que se defrontou na sua longa carreira de professor
Para o P. Jorge
Na sala de aula coabitavam a primeira e a segunda classes. A aprendizagem dos grupos era regular e, com ligeiras diferenças de semanas, os alunos chegavam quase sempre ao mesmo nível de conhecimento. As operações aritméticas básicas, o alfabeto e a leitura. Durante toda a sua carreira de professor primário guardava na memória, de todas as crianças que ensinara, o momento mágico em que as ouvia ler pela primeira vez.
Numa escola pública frequentada por alunos originários de vários estratos sociais e de diferentes etnias, foram raras as vezes em que, mesmo nos casos mais difíceis, sentiu desespero perante a dificuldade em ensinar um aluno.
A certa altura, porém, nas carteiras de madeira da sala de aula onde ensinou várias gerações de crianças, sentou-se uma cujo carácter dócil e a curiosidade o fizeram crer que rapidamente se destacaria por entre o aproveitamento da classe.
O João (nome fictício) era uma espécie de benjamim daquela turma da escola primária. Louro, de olhos azuis, vivo, generoso e questionador, colhia o afecto de colegas, professores e funcionários. Mas o João não conseguia aprender a ler.
Num tempo em que dislexia e hiperactividade eram conceitos desconhecidos no universo escolar, o João foi um dos casos exigentes e desafiantes com que se defrontou na sua longa carreira de professor.
E numa sala em que que já coabitavam duas classes e estádios de aprendizagem diferentes, o João passou a ser uma terceira «turma», cujas lições se estendiam pelos minutos do recreio, sem que nem ele nem o professor desistissem desse objectivo comum que era conseguir pô-lo a decifrar palavras.
O processo de aprendizagem demorou e o desespero chegou a atravessar a mente do professor. O carácter dócil e curioso do João manteve-se intacto mesmo quando todos os constrangimentos burocráticos escolares o empurravam para um chumbo e para a separação da turma que já torcia pelo momento em que conseguiria ouvi-lo a ler.
No limite do ano lectivo, o João descodificou um breve texto que, no quadro de ardósia, dava o mote para a lição do dia. A turma aplaudiu e a comoção alastrou ao olhar antigo do professor primário, então já a mais de meio da sua carreira docente.
Nesse ano a filha do professor entrara da turma onde coabitavam as duas classes. O João era um dos seus melhores amigos. A descoordenação motora que a impedia de saltar bem ao eixo e a fazia tropeçar nos seus próprios pés, não fora suficiente para afectar a amizade infantil que os uniu. Antes de aprender a ler o João dera-lhe o único cão (rafeiro) que teve em toda a sua vida, e umas andas de madeira com as quais compensava a sua falta de jeito para brincadeiras arriscadas.
Pouco depois da reforma, o professor da escola onde coabitavam duas classes, foi capturado pela demência.
Trinta anos depois, na rua da tipografia onde o João compunha textos para o jornal da cidade, chegava, num fugaz reencontro adulto, um bizarro pedido. O filho do João não tinha dificuldade na aprendizagem da leitura mas o João queria que o velho professor o ajudasse a começar a ler.