Opinião

Cada um é muita gente: Pela vida, cidade

28 abr 2024 10:22

Caminha e, por caminhos, vai sendo quem ele é, uma espécie de peregrino, um menino apregoando a fé 

Anda pela cidade devagar, como se a cidade só andasse se ele andasse também, como se ela não pudesse respirar, como se ele fosse os pulmões que ela tem. E ele fala assim, envergonhado, com medo de falar, vai-se chegando aos outros encurvado, numa forma tremida que parece venerar.

Anda pela cidade às escondidas, como se ninguém o visse e toda a gente o encontrasse, como se ele se despedisse e logo depois se mostrasse a quem está aqui e ali, numa esplanada, a quem anda a passear, a quem faz nada, a quem faz o nada durar.

Anda pela cidade como se andasse pelos corredores da sua casa, pôr a mesa, mudar de canal, vestir o pijama, ler o jornal, e lá anda ele com os talheres e o comando, a flanela, o papel e o vai-se andando que a vida vai passando, e não é que a vida passa? E nem sempre é alegria, e nem sempre é desgraça. É o dia que ele vê e que ele tem, é o fim de tarde, o fim de dia, o fim de um filho de um pai e de uma mãe. Quem são, por onde andam, e ele por aqui, pelas ruas que desandam, pelo sorriso que, lá de vez em quando, sorri.

Anda pela cidade parecendo assim, um caminhante cumprindo uma promessa de quem anda sem fim, sem promessa alguma, só com a crença numa espécie de doença que parece que o aproxima da loucura. Caminha e, por caminhos, vai sendo quem ele é, uma espécie de peregrino, um menino apregoando a fé.

Anda pela cidade parecendo pedinte, lotarias, raspadinhas, sendo ouvinte de sins e de nãos, muito mais de nãos, e das ladainhas que ele diz para aceitar uns e outros, não infeliz, também não contente, parecendo assim, por um triz, ser gente.

Anda pela cidade parecendo perdido, magrinho, olhar alto e no chão, conhecendo as pedras por onde anda, um homem sozinho numa banda com trombones, tambores, oboés, tudo calado rente aos pés num guardachuva fechado, pendurado à espera dela. Mesmo sem previsão, ele anda com ele à mão e não se desfaz da vontade que se acomoda. Ele e ele, a vida, e anda a roda.