Editorial
Carta aos filhos do Putin
Por determinação do vosso pai, não podem usar palavras como “invasão”, “ofensiva” ou “guerra”
Poucos sabemos ao certo quem vocês são, quantos são e onde estão. Mas sabemos que existem.
Também não fazemos ideia se mantêm o contacto com o vosso pai, mas imaginamos que devem manter, pelo menos, algum tipo de ligação.
Nesse sentido, acreditamos que lhe tenham enviado algum presente ou mensagem alusiva ao Dia do Pai, no passado dia 23 de Fevereiro, data em que se assinalou também na Rússia o Dia do Defensor da Pátria.
Acontece que, no dia seguinte, o vosso pai deu início a uma “operação militar”, que mais não é do que uma bárbara invasão de um país soberano, com custos irreparáveis para milhões de vidas, não só na zona de conflito, mas em todo o mundo.
Sendo certo que alguns de vós também terão filhos, ficámos na dúvida como lhes vão explicar o que está a acontecer na Ucrânia.
Por determinação do vosso pai, não podem usar palavras como “invasão”, “ofensiva” ou “guerra”.
Logo, o mais provável é alinharem pela narrativa que ele tem tentado propagar e defenderem que o avô é um herói, que apenas ordenou o avanço das tropas para garantir a “manutenção da paz”.
Seja qual for a argumentação, se os vossos filhos um dia tiverem acesso às imagens não filtradas da guerra, gostaríamos de saber como vão encarar, entre tantas outras, aquela história da mulher grávida, ensanguentada, a sair em maca de uma maternidade bombardeada, seguida da notícia que mãe e filha acabaram por morrer.
Talvez não saibam, mas aqui em Leiria, como em todo o Portugal, o Dia do Pai comemora-se a 19 de Março.
Depois de dois anos de isolamento pandémico, por cá, os pais preparavam-se para voltar a comemorar em liberdade com os seus filhos.
Mas é pouco provável que o façam. Graças às convicções do vosso pai, neste momento, estão muito preocupados com os aumentos astronómicos dos combustíveis, da electricidade, do gás, dos alimentos, com a possível escassez de bens essenciais, mas também com o drama das pessoas que fogem das explosões.
Quando vocês nasceram, presumimos que o vosso pai tenha feito tudo para que nada vos faltasse.
Suspeitamos, porém, que possa ter sido parco no afecto e um pouco desligado do fervor familiar.
Caso contrário, agora com 69 anos, ele seria um avô protector, não apenas dos seus netos, mas dos netos em geral.
E não admitiria nunca, por exemplo, que uma bebé de dois meses fosse obrigada a percorrer mais de 3.000 quilómetros em autocarro, para chegar a Leiria ao colo de uma mãe ucraniana em lágrimas, agradecida por a terem acolhido, mas certamente esmagada pela dúvida se aquela sua filha algum dia vai ser abraçada pelo pai.