Opinião

Chuva

5 jul 2023 16:46

Preparamo-nos para que nos chova em cima e depois evitamos todo o contacto da pele com a água

Às vezes chove, nem quando se quer nem quando se precisa. Acontece: augúrio de passeio estragado. Revi hoje no gotejar na cara a sensação que tinha perdido quando passei a ter medo de andar de bicicleta à chuva.

Chegar molhado a algum sítio dava-me o à-vontade de já ser diferente e ter quebrado a convenção de me ter de apresentar normalmente seco. Se fosse peixe estava morto. Olá, chamo-me peixe morto. E a conversa ficava assim. Sem mais nenhuma gota de tinta a secar-me na pele ou no cabelo com vida.

É que a água da chuva traz vida. Sou também legume plantado à espera de rega, à espera de monção como de árvore de fruta de monda. Preparamo-nos para que nos chova em cima e depois evitamos todo o contacto da pele com a água. Molha-nos a roupa que se constipa e sem cruzarmos com o toque o pontilhado da chuva avançamos com armas e armaduras em frente, se a pé, devagar, se de transportes.

Encarrego-me de falhar totalmente em qualquer prestidigitação meteorológica, aceitando o destino que os meus olhos da janela confirmam como inevitável e nesse espaço de interpretação largo a correr em direcção a qualquer experiência certa que a ciência me traz, acreditando, claro está, em factos comprovados. Vai chover.

Também há quem diga: vai haver vida. Ou vai viver, também encontra nessa verdade uma certa exactidão, igualmente sem compreender a origem do que lhe se prende e agarra enquanto resquício da mensagem que alguém passou em forma de informação credível. Aí torna-se fácil tomar um partido. A fonte mais verosímil é para a qual a chuva contribui. É tanto origem como prova que choveu.

Como tudo, o que queremos considerar como tudo para englobar uma certa bonomia, é o início que importa. Ninguém se pergunta quem fez a nuvem, de onde evapora a água, a que temperatura cai. Onde cai e que rio brota dela já importa. Que cá fica a amaciar os seixos do caminho e a afundar valas e vales, alagar valados e canais, e a deixar rasto.

Só se lembra mesmo quem se molha, e olha que só dura o tempo de a sacudir em jeito de conversa de circunstância, está de chuva, e passar à circunstância dita cuja. Se é chuvada, enxovalhada ou enxurrada já só é regime de excepção daquilo que é o normal. Há vida depois da queda de granizo. E a morte. Que a violência cria ao mesmo tempo que retira, como a terra que em êxodo vai do quintal e da horta para a sarjeta, a pedir mar no fim de linha.