Opinião
Cinema e TV | Isto é uma coisa a ver: Aftersun
Um filme brutal, como só as coisas delicadas o sabem ser
Aftersun é um filme escrito e realizado pela estreante Charlotte Wells, que o assume como uma autobiografia sentimental. É um filme brutal, como só as coisas delicadas o sabem ser. Para que o resultado final seja extraordinário contribuem, não apenas o talento da realizadora, mas a fantástica interpretação de Paul Mescal (o Connel da igualmente extraordinária série Normal People) e a não menos brilhante atuação da muito jovem Frank Corio, que nos transporta, como que por magia, para os nossos próprios onze anos.
O filme começa no início das férias de Calum (Paul Mescal), um pai divorciado de 31, e Sophie (Frank Corio), a sua filha de 11, filmadas por Sophie com uma anacrónica câmara que desde logo posiciona o filme algures nos anos 90. As férias, numa estância decadente na costa da Turquia, avançam sem pressa, entre banhos de piscina, noites de animação duvidosa, experiências de exclusão de pré-adolescência, conversas entre pai e filha, diversão inocente, protetor solar e aftersun, tudo embrulhado numa doçura terna à qual nenhum espetador consegue ficar indiferente. Mas se a nossa própria memória de férias de infância nos ajuda a ver toda a ternura que escorre do filme, Charlotte Wells dá-nos também, desde o início, indícios de um mal-estar com o qual nos conseguimos igualmente identificar. Calum, para além de pai, é um ser à procura de si. Parece não ter passado nem futuro. Aparece captado pela câmara de Wells em reflexos, fragmentado, dividido, e, à medida que o filme avança, vai-se percebendo que existe um desconhecido nos silêncios, expressões fechadas e respostas evasivas, que surge para lá da porta fechada do quarto de hotel ou depois de Sophie dormir, como se o imenso amor que o vemos sentir pela filha não fosse suficiente para dar consistência à sua vida. Talvez a própria Sophie tenha resumido essa ambivalência quando diz “Nunca sentiste que tiveste um dia incrível e depois chegas a casa e sentes-te em baixo, cansado? Como se os teus ossos não funcionassem, como se te estivesses a afundar.”
É esse Calum desconhecido que Sophie, 20 anos depois, com a idade do pai e já mãe ela própria, procura resgatar nas suas memórias e nos vídeos caseiros dessas férias, encerrando a analepse com a última dança com o pai ao som de "Under Pressure" dos Queen, que nos dá toda a chave de interpretação do filme. A não perder.