Opinião

Cinema e TV | Isto é uma coisa a ver: Blue Velvet

2 fev 2025 15:46

O mundo é um sítio estranho, e os mundos que Lynch nos ofereceu comprovam-nos, mas, de forma otimista, Blue Velvet garante-nos que é um sítio em que, no final, os pássaros conseguem comer os vermes

A morte de David Lynch, um dos mais criativos realizadores do nosso tempo, impõe uma revisitação à sua obra. Poderíamos começar por Twin Peaks, a série policial que no início de 1990, num tempo em que não havia streaming nem gravações automáticas, colou ao ecrã toda uma geração sedenta da inovação que Lynch proporcionava.

No entanto, a estranheza e fascínio causado pelo universo de Lynch, acentuados pela melancolia doce das músicas de Badalamenti, estava já presente em Blue Velvet, filme estreado em Portugal em 1987.

Blue Velvet é, à imagem de Twin Peaks, um policial em que a solução do mistério (quem matou Laura Palmer, em Twin Peaks, ou a quem pertence a orelha, em Blue Velvet) se torna um mero pretexto para explorar aquilo que se esconde para lá da superfície polida e limpa da normalidade. Assumindo-se como um film noir logo na cortina escura e vibrante do genérico inicial, cabe a Isabella Rosselini, enquanto Dorothy Vallens, o papel da sedutora femme fatale, e a Kyle MacLachlan o papel de Jeffrey Beamount, o jovem aspirante a detetive que se vê incontrolavelmente arrastado para o universo sombrio e perturbador de Dorothy e Frank Booth (Dennis Hopper), um gangster com uma obsessão por Dorothy e por veludo.

Mas Lynch, ainda que explore de modo sublime o desvio e a obsessão, não se limita a eles. Todo o filme é construído num movimento oscilante entre a escuridão e a luz, a noite e o dia, a perversão e a normalidade da american way of life suburbana, representada por Sandy, a namorada de Jeffrey (papel que coube a Laura Dern) e pela sua família. Este movimento, que é também é descendente e vai da superfície à profundidade subterrânea, dos pássaros aos vermes, é uma metáfora para a luta entre o bem e o mal. E o mal, diz-nos Lynch, é a falta de amor. Apenas o amor, representado pelos piscos no sonho de Sandy, poderá trazer luz ao mundo que, sem ele, fica para sempre mergulhado na escuridão. E, por isso, Blue Velvet não é um policial sobre o mistério do homem a quem poderá pertencer a orelha encontrada por Jeffrey, nem sobre a paixão desviante de Frank ou o desejo provocado pela misteriosa Dorothy, nem mesmo sobre a icónica interpretação de Blue Velvet feita por Isabella Rosselini. Blue Velvet é sobre a história de amor entre Sandy e Jeffrey, embalada pela música Mysteries of Love de Juliee Cruise, que restaura a ordem a confiança na normalidade. O movimento dialético entre o bem e o mal, que Lynch explora, encerra retomando as imagens luminosas e coloridas do bairro suburbano que abrem o filme, fechando assim o círculo que permite restabelecer a felicidade familiar suburbana, aumentada pelo amor de Jeffrey e Sandy e de Dorothy e Don, o filho que fora raptado por Frank. Como Sandy e Jeffrey referem repetidamente, o mundo é um sítio estranho, e os mundos que Lynch nos ofereceu comprovam-nos, mas, de forma otimista, Blue Velvet garante-nos que é um sítio em que, no final, os pássaros conseguem comer os vermes.