Opinião

Cinema | 48 dias depois

5 jun 2020 20:00

A atualidade parece replicar o argumento de um filme distópico de série B.

Uma produção amadora em cenário pós-apocalíptico com elenco e tempo de rodagem reduzidos ao mínimo, por conta de um orçamento miserável, que deixa completamente escancarada a incompetência da Humanidade como argumentista e a sua incapacidade de conceber cenas com alguma verosimilhança - ainda que, paradoxalmente, estas sejam a sua própria realidade.

Ainda há um par de semanas, com as ruas praticamente desertas, o silêncio era cortado apenas a espaços por um ou outro carro isolado, condutor mascarado a fugir em alta velocidade do vírus invisível.

Não seria surpreendente ver as mesmas ruas invadidas, instantes depois, por uma horda de zombies devoradores de cérebros, tal como, infelizmente, não surpreende perceber que, apenas algumas semanas mais tarde, regressámos ao mesmo ritmo frenético de automóveis em constante engarrafamento, que o canto dos  pássaros deu lugar ao ruído de motores sôfregos e o ar torna a encher-se de intensos odores da combustão.

Analepse para o momento imediatamente posterior ao cataclismo: multidões na rua, violência e pilhagem. Repressão policial. Fumo. Fogo. Sangue.

Ou então é apenas uma peça jornalística acerca da contestação social nos Estados Unidos da América, polarizada e orientada politicamente.

Mais um exemplo da fraca capacidade do argumentista em criar um fio condutor coerente. Resta-lhe pensar a cena final e decidir o momento e espírito da mesma.

Desilusão e calamidade? Ou, deixar em suspenso a possibilidade de um final feliz, ainda que remoto?

Fora da ficção(?), fica a ideia que tivemos oportunidade de viver (e viveremos ainda, possivelmente) tempos excecionais.

E que eventualmente pudemos vislumbrar a alternativa de um quotidiano que poucos equacionavam. Se, no auge da pandemia, os decisores políticos tiveram a capacidade de, por intermédio de uma irracionalidade movida a medo, convencer uma larga fatia de cidadãos a ficarem reclusos nas suas casas e arriscar o seu próprio futuro económico, por que não acreditar que é exequível repensar de forma radicalmente diferente as questões da mobilidade urbana?

Por que continuamos a construir no centro da cidade, sem pensar as vias como primordialmente destinadas à circulação dos peões e dos ciclistas?

E, porque não eliminar definitivamente a circulação automóvel nas zonas históricas e construir um corredor pedonal que ligue a cidade ao rio?

Afinal, todas as objeções economicistas parecem cair por terra, quando um patogéneo obriga o comércio a fechar portas.

Por que não apostar num paradigma diferente e optar por uma solução fora da caixa, diferente e inusitada? A alternativa é confiar no argumentista de série B e repetir a história, um passo após outro, a caminho do final catastrófico.

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990