Opinião

Cinema | Deuses do rock e a sua banda em trabalho

2 jan 2022 15:25

Todos os elementos da banda sabiam que o fim estava próximo; porém, não sabiam que ele estava ali ao virar da esquina

The Beatles: Get Back foi um dos grandes acontecimentos de 2021, quer a nível histórico, porque permitiu lançar uma nova luz sobre as relações entre os vários elementos da banda à beira da dissolução – o mito que se formara era que se tratavam mal em 1969 – quer a nível cinematográfico, uma vez que disponibilizou conteúdo inédito de uma das mais importantes bandas de sempre, apesar dos cerca de 50 anos que já decorreram. Peter Jackson foi o homem responsável pela realização deste documentário dividido em três episódios. No total somam-se quase oito horas de vídeo e de som. Isto é o que temos de mais próximo de um convívio direto e familiar com a criatividade e o génio de Paul McCartney, John Lennon, George Harrison e Ringo Starr.

Jackson mergulhou num oceano de material (mais de 60 horas de imagem e 150 de áudio) e deu ao público uma pérola inestimável, revelando os belos momentos de diversão, confraternização, entrega e sacrifício, que foram esquecidos devido ao infame Let it Be (1970). O realizador leva-nos através dos dias, inicialmente, nos Twickenham Film Studios e, posteriormente, no improvisado estúdio da Apple Corps., cada um destes espaços representando diferentes estados de espírito e desenvolvimento. Os Beatles têm praticamente 2 semanas para produzirem 14 músicas. Sem dúvida, um projecto megalómano que põe à prova as capacidades criativas da banda, em que o génio tem mesmo de vir ao de cima, ou então resultará em fracasso. A pressão é tão grande que obviamente resulta em conflitos de método para organizar o caos das sessões. Um dos momentos representativos dessa insatisfação é a declaração da saída de Harrison anunciada de uma forma muito estoica.

A chegada de Billy Preston é fundamental para dar uma nova energia ao grupo e desbloquear algumas músicas, que vinham a ser repetidas sem grandes progressos, sobretudo “Don’t Let Me Down”, que logo ganha outra vida assim que o pianista imprime a sua criatividade na harmonização. O mais surpreendente é como Preston rapidamente entra na dinâmica da banda e descobre caminhos melódicos que os outros há muito procuravam mas não encontravam. Temos aqui uma espécie de reality show, que incomodou inicialmente Harrison, quando soube que as conversas mais banais iam ser gravadas. Mas isto em nada fere a aura dos músicos que, nas conversas pós/pré-ensaios, falam sobre a situação da banda e a actualidade que os rodeia (por exemplo, a admiração pelo discurso de M.L.K.), demonstrando que não viviam numa torre de marfim. E não é por acedermos a este tipo de realidade que de repente temos os ingredientes para também sermos artistas memoráveis. O génio é irreprodutível por mais provas evidentes que existam da sua manifestação.

A magia deste documentário está em podermos assistir a uma criação ao vivo de algo lendário, como quem tem uma máquina do tempo e recua até à criação das pirâmides no Egipto. Todos os elementos da banda sabiam que o fim estava próximo; porém, não sabiam que ele estava ali ao virar da esquina. Ainda assim, aqui temos os Beatles juntos para one last deed. E que último momento juntos nos deixaram!