Opinião
Cinema | Lírica dos saloios
O filme, não sendo politicamente motivado (a carreira política de J.D. ter-se-á iniciado apenas em 2021), vale pela consciência de classe e análise social, para (se tentar) entender a motivação de determinada faixa do eleitorado americano
Segundo Paul Mason, reconhecido jornalista e ativista britânico, autor do essencial volume Como Travar o Fascismo, o extremismo e populismo associados à direita radical e o conservadorismo autoritário, ainda que diferindo do fascismo na estrutura e na linguagem, partilham várias das suas raízes filosóficas. Esta constatação, que se diria óbvia e evidente, é frequentemente dissimulada pelo ruído da vociferação, pelo colorido e luzes brilhantes nos palcos dos comícios e pela agenda nem sempre clara ou imparcial dos media. Se dúvidas houvesse e se quisesse aferir em pormenor a validade destas teses, que melhor laboratório para tal do que os Estados Unidos da América e a atual campanha para as eleições presidenciais de novembro?
Se a persona de Trump era, por si só, polarizadora, extremista e extremada, ainda que, para determinado público, facilmente caricaturável, a escolha do candidato a vice-presidente do partido Republicano representa um esforço para credibilizar ideologicamente o desvario radical do ex-presidente e renovado candidato. J.D. Vance, o nomeado para vice de Trump, foi, por alturas da anterior eleição, um vocal e feroz crítico do magnata do cabelo laranja, atirando-lhe com impropérios como “idiota” e “Hitler americano”.
A relação entre os dois terá, entretanto, amenizado, muito à conta do sucesso do livro que Vance publicou, em 2016, sob o título Hillbilly Elegy – A Memoir of a Family and Culture in Crisis (Lamento de Uma América em Ruínas – Memórias de uma Família e Sociedade em Crise, na edição portuguesa, da D. Quixote).
Vance não é, de todo, um moderado: opositor do aborto, do casamento homossexual, crítico da imigração e do apoio militar dos Estados Unidos à Ucrânia, a orientação ideológica pouco difere da matriz conservadora de Trump, o que não deixa de ser paradoxal. No livro, recorda a sua infância e adolescência, no Kentucky e Ohio. Hillbilly, que se traduziria por saloio, pacóvio ou mesmo serrano, numa alusão mais clara à proveniência destas comunidades rurais das regiões montanhosas dos EUA, é um termo pejorativo que estereotipa as famílias de origens modestas e valores conservadores.
Vance, atual senador pelo Ohio, capitaliza o seu percurso: filho de mãe solteira, cujos problemas com drogas levaram a que fosse maioritariamente criado pelos avós, passando por uma comissão no Iraque, incorporado nos U.S:Marines, até se formar, graças a diversas bolsas, pela Yale Law School.
Lamento de uma América em Ruínas, filme de 2020, realizado por Ron Howard – famoso “tarefeiro” de Hollywood, nunca genial, mas sempre competente – pouco mais faz que reproduzir o livro (a elegia e o elogio) e o discurso de Vance. Não sendo politicamente motivado (a carreira política de J.D. ter-se-á iniciado apenas em 2021) vale pela consciência de classe e análise social, para (se tentar) entender a motivação de determinada faixa do eleitorado americano.
Fundamentais, isso sim, são as interpretações de Glenn Close (como avó) e Amy Adams (como mãe) do jovem J.D. Vance.