Opinião
Cinema | O rio sufocado que nos lembra o que é Cinema
E no meio deste turbilhão luminoso, houve um filme que nos silenciou por dentro: A River Stifled, de Jingwei Bu
Na 12.ª edição do nosso Leiria Film Fest (que acabou agora a 25 de maio), vivemos dias que não cabem em palavras — dias de descoberta, de encontros improváveis, de salas cheias e corações também. Foram 70 curtas-metragens e uma longa, que homenageou o renomado produtor e presidente da Academia Portuguesa de Cinema, Paulo Trancoso; mas foram sobretudo 3.200 espectadores, 60 convidados e um sem-fim de emoções partilhadas.
Cada sessão foi um abraço, cada conversa um prolongamento do amor que temos pelo cinema. E no meio deste turbilhão luminoso, houve um filme que nos silenciou por dentro: A River Stifled, de Jingwei Bu.
Vencedor dos prémios de Melhor Curta-Metragem do Festival e Melhor Curta de Ficção Internacional, esta obra vinda da China tocou-nos como só o verdadeiro cinema sabe fazer — devagar, com beleza, e para sempre.
No degelo de uma primavera fria no nordeste da China, o jovem Lei Zi regressa a uma casa que nunca foi sua, após sair da prisão. O reencontro com o pai, marcado por silêncios, cria uma tensão que se reflete no próprio cenário: um rio preso por blocos de gelo, prestes a romper. A metáfora é simples e profunda — há rios que não fluem, há vidas suspensas à espera de alguma coisa, de uma palavra, de uma segunda oportunidade.
Jingwei Bu filma com a sensibilidade de quem ouve antes de falar. Cada plano, cada pausa, está impregnado de uma atenção rara. O humor que surge, por vezes, nos encontros de Lei Zi com o dono da loja e com uma influencer do TikTok, não serve para aliviar, mas para humanizar. Há absurdo, sim — mas é o absurdo da vida, de quem tenta voltar a algo que talvez nunca tenha existido de verdade.
A estética rigorosa — da fotografia à montagem, do som à direção de arte — constrói uma atmosfera de contenção emocional que nos prende. Tudo é depurado, essencial. E talvez seja por isso que nos toca tanto: porque há verdade nesta contenção, nesta dor sem espetáculo, neste rio sufocado.
A River Stifled é daquele cinema que não termina nos créditos. É um filme que ficou connosco muito depois da sala ficar vazia — como uma ferida antiga, como um eco que regressa sempre.
No meio de tantos filmes belíssimos que recebemos em Leiria este ano, foi este que, de forma silenciosa e discreta, o que mais nos deixou sem palavras. E isso, para quem faz um festival de cinema, é talvez o maior elogio possível.
Tanto eu como o Bruno Carnide, agradecemos, profundamente, a todos os que fizeram parte destes dias: aos realizadores, produtores e equipas que viajaram até nós com os seus filmes no coração, ao público que encheu as salas com generosidade e curiosidade, e à equipa que sonhou e trabalhou para que tudo isto acontecesse.
O cinema, em Leiria, é cada vez mais um lugar de pertença. Disso, não tenho dúvidas.