Opinião

Cinema | Visão raio-X

18 dez 2020 20:00

No seio de uma família a braços com a revolução

Hossein e Tayi são iranianos. Ele, um progressista secular que estuda radiografia em Genebra, conhece-a durante umas férias escolares em que regressa a Teerão.

Ela, muçulmana tradicional e devota, acaba por se casar com uma fotografia dele, que apaixonado, se vê, no entanto, impedido de se deslocar para a terra natal para cumprir com o casamento de forma presencial.

Tayi acaba por ir viver para a Suíça, ao lado do marido, durante um curto espaço de tempo, mas a vida ocidental e boémia que Hossein pratica vai contra os princípios religiosos da conservadora jovem. Após o nascimento da pequena Firouzeh decidem regressar para o Irão, onde, lentamente, o tradicionalismo de Tayi acaba por vencer o liberalismo de Hossein.

O parágrafo anterior está longe de ser o resumo de um romance de cordel ou novela televisiva. É antes uma introdução àquele que será, provavelmente, um dos mais aclamados documentários em 2021. Firouzeh Khosrovani é, simultaneamente, a filha daquele casal e a realizadora de Radiograph of a Family, que se estreou este mês em Amesterdão, no International Documentary Film Festival of Amsterdam (IDFA), arrebatando o galardão de melhor longa-metragem.

O seu mais recente filme, profundamente pessoal e biográfico, é, acima de tudo, a história de uma família que se vê transformada pela revolução islâmica. Aviso à navegação: desengane-se desde já quem procure traçar paralelismos fáceis entre Radiograph of a Family e um Persépolis, de Marjane Satrapi, por exemplo.

Tayi Khosrovani envolve-se profundamente no movimento revolucionário que levará à queda do Xá e ascensão da República Islâmica, tornando-se uma figura de referência na Revolução e, gradualmente, os preceitos religiosos fazem desaparecer da casa da família o álcool, mas principalmente a música e arte ocidentais, elementos fundamentais da educação que Hossein sempre procurou proporcionar à filha.

O espaço da casa é o espelho destas transformações e o meio escolhido pela realizadora para transmitir as mudanças que se vão operando simultaneamente no seio e estrutura familiares e no país.

Num filme que vive maioritariamente de imagens de arquivo e da narração, em off, de Firouzeh –  mas também da leitura de cartas e diálogos encenados com as vozes de atores, reproduzindo momentos da vida do casal – as imagens recorrentes da casa de Teerão são o ponto de ancoragem deste documentário.

O ritmo lento não se torna em momento nenhum maçador, pela riqueza estética e construção do enredo, que reflete de uma forma ao mesmo tempo íntima e coletiva o momento histórico do Irão durante a Revolução.

Surpreendente, apesar da carga pessoal inerente, é a forma isenta como Firouzeh (que veio a ter uma educação ocidental) constrói um documento ausente de juízo de valores e que é, precisamente por isso, ainda mais interessante e envolvente.

Artigo escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990