Opinião

Criadores de conteúdos

5 abr 2022 15:45

A boa vontade, quem sou eu para a discutir?

Em 1924, George Mallory, um inglês, juntou-se à famosa expedição para subir ao pico do Monte Evereste na Ásia.

Pouco se sabe do sucesso final desta ambiciosa empresa. Só que teve o condão de criar a sua própria mitologia, substanciada na célebre frase atribuída a Mallory, quando questionado sobre o porquê de querer subir aquele monte: “Porque está ali.”

Em tempos de peste e guerra, passa-nos despercebido o número de mortes acidentais (e cadáveres não recolhidos), derivadas, por exemplo, de pessoas que quiseram escalar o Monte Everest sem terem condições físicas para o fazer; ou, de outras, que caíram de prédios, de pontes, de promontórios, todas unidas pelo grande arrepio colectivo dos likes em outro dos grandes vírus desta nossa nova desumanidade. Causa de morte: criação de conteúdos.

Esta obsessão por documentar e partilhar, baralhar e tornar a dar, tem-nos tornado piores pessoas, ao arrepio da moral kantiana, que ordenava o desinteresse à caridade e a responsabilidade à liberdade.

Quando André Jorge, do Serviço Jesuíta aos Refugiados, na edição passada do JORNAL DE LEIRIA, invoca os perigos do excesso de voluntarismo que pode “colocar as pessoas que se pretende salvar em risco”, há quem torça o nariz e que pegue numa carrinha e vá salvar o mundo.

A boa vontade, quem sou eu para a discutir?

Confesso, no entanto, que ainda não sei reagir a certas sequências de fotos no Instagram em que mostram, primeiro, uma família na sua piscina a aproveitar os feriados e, a seguir, o pai dessa família a fazer o V de Vitória na fronteira polaca-ucraniana, todo vestido de camuflado, criando conteúdos, enquanto passa mantimentos e roupas.

Se calhar, para haver pessoas como eu, tem de haver pessoas com ele.

Mas, custa-me a entender que se afinal vivemos num mundo com tanta gente boa, e que, tantas vezes, sente que pratica melhores actos e que tem melhores opiniões que os outros, que estes anos imediatos tenham apenas sido de peste, de guerra, de desigualdade entre lucros e preços, de tudo menos paz, harmonia e progresso.

Tenho muito a aprender, talvez. E que melhor professor que o tempo?

Isto é, se ainda formos a tempo de ter tempo.