Opinião

Deixem o Robinson em paz!

9 mai 2019 00:00

O livro Robinson Crusoé faz 300 anos. Parabéns a você. É um dos meus livros de cabeceira. Li-o quando era jovem, e reli-o inúmeras vezes já adulto, em outros contextos e alturas.

Não vos vou chatear com a história do mais célebre naúfrago do mundo, pois ela é sobejamente conhecida. O livro está também no Plano Nacional de Leitura, aconselhado ao 6.º ano, o que demonstra a importância e universalidade da sua prosa, que tem resistido ao desgaste do tempo e das teorias literárias.

O cantor e compositor Nick Cave, avesso à estupidez das redes sociais, inaugurou uma espécie de diário (The Red Right Hand) no seu site, onde formula respostas completas e muito interessantes a perguntas escolhidas com um critério irrepreensível.

Numa das suas respostas, alerta para o perigo factual da instalação na sociedade crítica de uma ditadura do politicamente correcto. Vai mais longe, afirmando que se deitássemos fora da nossa colecção de discos todas as obras de alguém com um passado questionável, as nossas estantes ficariam quase vazias.

Penso que não será insensato dizer o mesmo dos livros e dos seus autores. É esse espírito revisonista que se evidencia no artigo do Diário de Notícias acerca do aniversário de Robinson Crusoé, que Maria João Caetano assina.

Apelidando a obra de “metáfora do colonialismo”, pergunta como podemos “dialogar” actualmente com o herói “racista” do século XVIII, à luz dos tempos modernos. Adianta-se, sugerindo a tese de que, afinal, o livro de Daniel Defoe é uma história de conversão religiosa à força, de colonialismo e esclavagismo, aceitável há três séculos, mas, provavelmente condenada ao crivo do politicamente correcto e seu crescente index.

Eu não sou um especialista literário, nem tão pouco formado em Letras, mas falo do ponto de vista de um leitor preocupado com o desconhecimento do cariz político do autor, da evolução da própria história e mentalidade do livro nas suas sequelas e posteriores edições, interrogando-me acerca do real valor desta peça do DN e muito mais acerca do seu ulterior objectivo que não me parece de boa-fé.

Quando regressa à ilha, após a morte da sua mulher, sensivelmente uma década depois da partida do seu cativeiro, Robinson Crusoé resgata vários passageiros de um navio à deriva, levando-os até um porto para que pudessem regressar, em segurança, à sua viagem original.

À boleia vem também um padre católico Francês (Robinson era Inglês e, por isso, Protestante) que segue até à ilha de Crusoé, de modo a cumprir com a sua “missão”. Tal facto poderia até confirmar o que era o violento hábito da conversão ao catolicismo, afinal em Portugal ainda se queimavam Judeus onde agora se ergue o melhor de Lisboa ( e nem por isso deixámos de lá ir), mas só uma leitura muito superficial da sequela e mesmo do primeiro livro, poderia levar às conclusões apresentadas no DN.

Durante vários capítulos, a acção das Outras Aventuras de Robinson Crusoé centra-se pura e simplesmente no discurso a “três” entre o marido/cativo da ilha Inglês, que viveu “sem Deus” durante anos, a mulher nativa/libertada aos canibais, que de Deus ou Providência nada sabe e o padre francês, um católico e, como tal, um (ex)-inimigo dos protestantes.

A longa conversa que se trava, com notas do narrador, não pode ser entendida doutra forma que não uma reflexão séria mas serena, de harmonização e respeito inter-religioso, que leva o protestante Crusoé a ouvir toda a argumentação Católica e a admirar a fé e a fibra daquele homem religioso.

Na época do livro, ainda ecoavam na Europa os gritos sangrentos do massacre do dia de São Bartolomeu e apenas em 1555, na Paz de Augsburg se tenha oficializado a liberdade protestante e calvinista.

Esta parte do texto de Defoe é, aliás, um exemplo perfeito do sucesso da tolerância entre cristãos que tanto sangue tinha derramado havia apenas dois séculos.

É verdade que num dos episódios há uma descrição de um rapto de uma habitante local, refém da violência sexual de um dos marinheiros, mas estará Defoe a legitimar o rapto e a violação ou ao expô-la a revelar uma realidade brutal e uma preocupação em falar do assunto num livro tão famoso, que não precisaria de detalhe religioso ou “reportagens” de violência branca para se tornar célebre?

Eu, leigo, voto na última. A ilha de Robinson Crusoé poderia também, se isso ficasse bonito nos jornais, ser entendida como uma espécie de utopia, num século que era cruel no seu progresso mas que antecipou a queda dos Impérios, a começar pelo português, cujos cidadãos não são nada bem tratados pelo autor nas inúmeras referências a eles, apesar de ter sido muito ajudado por um capitão português.

Tira-se o livro do PNL e acrescenta-se xenófobo e ingrato ao elogio do autor? Os livros de Defoe, um animal político que escrevia aventuras permitiam analisar também o temperamento dos povos, auscultar de como afinal o Homem Branco ignorava que havia muito mais debaixo do Sol.

Como os ingleses tinham uma rebeldia intrínseca ao passo que os espanhóis, devido à proximidade com as suas famílias, se organizavam doutra maneira. Como havia partilha de alimentos, de recursos, como Crusoé ouvia conselheiros, decidindo o mais democraticamente (na época chamavam-lhe clemência) possível em tempos imperialistas é certo que uma obra tão grande faz ricochete.

Ou seja, que podemos, se quisermos, ver o alerta de “racismo” por lutarem e matarem canibais que, caso contrário, os matariam e comeriam a eles. Podemos (e devemos) condenar a conversão, a esclavagização ou podemos, e acho bem melhor e mais evidente em termos literários, olhar ao pormenor as relações que se estabeleceram entre as personagens na ilha, como se organizavam num contexto de pura sobrevivência, como foram geridas as circunstâncias politicas aquando do regresso do Senhor da ilha, entre outros apontamentos que fazem de Robinson Crusoé uma obra essencial para entender muito da sua época e do espírito progressista do autor.

Daniel Defoe é um grande vulto da Literatura e a sua obra maior não merece esta leitura. Um escritor como ele, um cidadão de causas e espírito critico indomável, nunca, mas nunca criaria o Robinson Crusoé racista e vilão colonialista que é descrito no artigo de 5 de Maio do DN.

É talvez tempo de ler um pouco mais devagar e não ter tanta pressa em mandar certos livros para o arquivo morto do “literariamente correcto”.

*músico