Opinião
Democracia: quem és tu?
Aparecem as democracias liberais e “iliberais”, com o caso da Hungria a ter uma nova designação – “democracia autocrática”
Meu caro Zé,
A leitura de dois livros nas férias – Fome Vermelha – a guerra de Estaline contra a Ucrânia (1ª publicação em 2017), de Anne Applebaum, e Um Diário Russo (1ª publicação em 2007), de Anna Politkovskaya, jornalista russa assassinada em 2006, foram contribuições decisivas para melhor tentar compreender a guerra da Ucrânia, lembrando ainda a célebre frase de W. Churchill: “A democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as outras experimentadas ao longo da história”.
Porquê esta lembrança? Porque a democracia (etimologicamente “governo do povo”) é um substantivo, cuja operacionalização acaba por impor o aparecimento de adjetivos que resultam das diversas formas de definição do que é o povo, como e onde se organiza e se governa, deixando-nos mergulhados numa confusão de difícil discernimento.
Provavelmente, Churchill referia-se à democracia representativa e tinha-a como padrão.
Mas até nesse caso haverá grandes diferenciações entre os processos de representatividade e de organização dos governos.
E, neste contexto, qual o “padrão” para escolher a “melhor” democracia?
E assim aparecem as democracias liberais e “iliberais”, com o caso da Hungria a ter uma nova designação – “democracia autocrática” -, no seio de um grupo de países cujas regras democráticas são, em parte, violadas porque a “autocracia” é incompatível com elas.
Que fazer? Colocar a Hungria de fora? Castigá-la? Mas é Hungria ou o povo húngaro? Como conciliar?
E esta pergunta leva-me à guerra da Ucrânia: como pode haver paz? Como pode haver conciliação?
Segundo Putin já em 2005 (citação do segundo livro referido) “os princípios fundamentais da democracia, as instituições da democracia, têm de ser adaptadas à realidade no terreno da Rússia de hoje em dia, às nossas tradições e história. E nós próprios faremos isso”.
A. Politkovskaya acrescenta: “Assim nasceu a ‘democracia tradicional’… Também ouvimos falar em ‘democracia soberana’ e ‘democracia adaptada’…”.
A leitura dos dois livros mostra a confusão entre “Rússia” e “espírito soviético” que, em termos de domínio político, não está eliminada e estará na base da guerra da Ucrânia.
A. Applebaum afirma que “o atual governo russo usa a desinformação, a corrupção e a força militar, tal como os governos soviéticos fizeram no passado”.
Mas todos os comportamentos de Putin eram bem conhecidos dos políticos americanos e europeus há anos, justificando uma posição do o prefácio do livro de A. Politkovskaya, de Jon Snow, que em 2007 se interrogava: “Como é que os nossos líderes ignoraram tão resolutamente o que sabiam que Putin estava a planear?”. Um bom exemplo é o papel que, desde 2004, Ramzan K. (líder checheno) desempenha como favorito de Putin (A. Politkovskaya).
Essa pergunta certeira, se for respondida com seriedade e transparência, poderá abrir caminho à conciliação, já que não há diálogo possível, salvo em situações limite, se cada lado também não reconhecer as faltas que cometeu.
Até sempre
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990