Opinião
Despique ou o tamanho da coisa
A fúria estava acesa e presente
A rotunda tem a dimensão e atitude que lhe é própria de coisa inerte: feita para servir de eixo circular a quem por ali transita.
Se ninguém ultrapassar os limites do lancil poderá preservar intactas as flores dispostas em órbitas perfeitas e simétricas à estátua epicêntrica, tão inerte quanto ela.
É uma espécie de sistema solar plantado ali no coração da cidade. Previsível e estático.
Já de quem em torno dela circula, conduzindo-se em duas ou quatro rodas, é menos espectável ter uma atitude tão previsível quanto a desejada.
O espírito e a letra da Lei, os diagramas, desenhos esclarecedores ou explicações pormenorizadas, de pouco ou quase nada têm servido a muitos condutores para saberem como agir quando circulam numa rotunda.
Não que se presuma serem sujeitos de fraco entendimento, mas tão-somente reféns de uma ideia colada à pele que os impele a que se encostem sempre à direita, mesmo quando a sua direita estorva a direita dos outros, pelo que a sua direita é sempre a mais direita e de interesse superior por comparação com as outras.
Neste despique de qual das direitas tem prioridade sobre as outras, há dias, dois ufanos cavalheiros conduzindo as suas garbosas e polidíssimas viaturas tomaram-se de razões em plena rotunda.
Um porque já nela vinha, outro porque nela queria entrar, os dois a teimarem quem primeiro deveria aceder à via ascendente que na rotunda se inicia.
Primeiro um arremedo de aceleração sem pretensão de parar, mas mesmo a ver-se que ambos travariam antes da colisão que entre o gesto afoito e a hipótese de macular a preciosidade metálica, há de o bom senso imperar que isto chapa batida, declarações nunca nada amigáveis, impropérios e viaturas de substituição enquanto a lindeza de carro está na oficina tem muito que se lhe diga.
E o que queria forçar a entrada levou avante o intento e seguiu rua acima.
O que já circulava na rotunda é que não se deu por vencido, sangrado na sua virilidade e, na impossibilidade de ser ouvido pelo adversário de contenda, sacou da arma que tinha ali mais à mão, sonora de facto, mas que causa dano aos ouvidos e fere a honra do inimigo expondo-o à censura pública de ter asneado na condução.
O nobre cavalheiro que ia à frente é que não esteve pelos ajustes e logo ali demonstrou que o seu instrumento debitava ainda mais decibéis.
E um pressiona a buzina e o outro a buzinar também e tem por resposta outra buzinadela que juntas se transformaram numa cacofonia ascendente e incómoda para os transeuntes mesmo que curiosos.
A disputa subia de tom e havia que salvaguardar a honra dos nobres cavaleiros.
O que ia na dianteira reduziu a marcha até um quase parado e o da retaguarda ia-se encostando com aceleradelas sonoras, mas inconsequentes.
E nós, ali atrás, naquela procissão penitente à espera que ambos se resolvem-se e nos evitassem o tempo mal gasto e o combustível desnecessário.
A via ascendente ganha novas faixas logo após a curva. Talvez se resolvam se, com um pedaço de sorte, cada um for para seu lado.
Qual quê? A fúria estava acesa e presente.
Ainda pensei que quando parassem lado a lado se enchessem de brio, saíssem dos carros e baixassem as calças para compararem o tamanho das pilas para conferirem ali qual era o mais viril.
Por sorte, ali mesmo ao lado, na via mais à direita, no seu velocípede de serviço, um pacato agente da autoridade esperava a vez de passar quando o semáforo verde acendesse.
Fardado que ia ostentava à ilharga o cassetete.
Não havia necessidade de comparações: a figura tutelar exibia o tamanho do seu poder e os cavalheiros-gaiatos e duvidosos de si resignaram-se e seguiram caminho, pacatos e mansos.
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990