Opinião
Dicionário improvisado XXII
Impressões, por Paulo Kellerman
Criação
Estava deus a criar o ser humano quando lhe deu a fome. Tinha acabado de formar a parte do cérebro responsável pela imaginação; apressado, passou de imediato para a secção contígua, a da memória. E foi lanchar. Devido à pressa, a fronteira entre imaginação e memória não ficou bem delineada, e por isso os dois segmentos do cérebro não ficaram devidamente estanques; efeito previsível: contaminação entre as duas secções. Ainda hoje a espécie humana sofre as consequências desta irreflectida pausa para o lanche.
Diário
Diz-me três pensamentos marcantes que tenhas pensado no ano 1998. Diz-me três sonhos que tenhas sonhado no ano 1998. Diz-me três medos que tenhas enfrentado no ano 1998. Diz-me três fantasias que tenhas concretizado no ano 1998. Diz-me três dores que tenhas suportado no ano 1998. Não te lembras? Nem pensamentos nem sonhos nem medos nem fantasias nem dores? Nada? Nenhuma memória, nenhuma marca que tenha ficado? Então para que serviu viveres durante todo – todo – o ano de 1998?
Espontaneidade (Aisha # 18)
Pai, por que razão não correm os adultos para dar abraços aos amigos quando os encontram na rua, como fazem as crianças?
Estupidez (Aisha # 19)
Pai, é estúpido quando as pessoas dizem «vamos deixar que o futuro decida o que vai acontecer», não é?
Gaza
Pelos vistos, existem evidências do aparecimento de vida no planeta Terra há três mil e quinhentos milhões de anos; o que significa que há pelo menos três mil e quinhentos milhões de anos que o mais forte esmaga o mais fraco. Talvez noutros planetas seja diferente, mas não encontrei dados na wikipédia.
Habilidade
Há pessoas que dizem com frequência: «Pois, mas eu não faço julgamentos.» É uma habilidade que sempre me impressiona: com a mesma frase, proíbe-se ao outro precisamente aquilo que se está a praticar.
Racionalidade (Aisha # 20)
Pai, a minha cabeça diz para ter medo, mas o meu coração diz que vai correr tudo bem. Em quem acredito?
Singularidade
Segue pela estrada a velocidade moderada. À esquerda e à direita, a floresta estende-se sem fim aparente. Passa por milhares de árvores, todas únicas, mas na verdade indistinguíveis entre si. Continua durante quinze minutos, depois corta numa pequena estrada que surge à sua direita e avança por ela durante alguns minutos. Árvores à direita e à esquerda. Por fim, pára o carro e sai. Entra na floresta e caminha a pé. Árvores à direita e à esquerda. Após alguns minutos, interrompe a caminhada e olha uma das árvores. É idêntica a todas as outras que estão em redor, não tem qualquer marca individual. Ele olha a árvore, sorri e diz: encontrei-te.