Editorial
Doutores e engenheiros
Existe o preconceito de que os alemães são rígidos e distantes, mas neste aspecto são muito mais descontraídos do que os portugueses
O ‘senhor doutor’ é, tal como o pastel de nata e a sardinha assada, algo tipicamente português.
Está-nos entranhado no sangue.
Somos um país de ‘doutores e engenheiros’, embora não tenhamos mais licenciados do que a maioria dos outros países europeus.
Os últimos dados da Pordata, relativos a 2019, revelam que a percentagem de portugueses entre os 25 e os 64 anos com ensino superior é de 26,1% (era de 10,5% em 1992), quando a UE 27 apresenta uma média de 31,4%.
João de Pina Cabral, antropólogo especializado em identidade social e pessoal, define os títulos académicos como “símbolos de um novo estatuto burguês”, a que a maioria dos portugueses aspirará.
Não é de estranhar, por isso, que se use e abuse do ‘senhor doutor’.
Quantas vezes não surge a pergunta, quando precisamos de contactar pela primeira vez alguém que não conhecemos: é doutor ou engenheiro?
Por via das dúvidas, usa-se um ou outro antes do nome da pessoa.
Existe o preconceito de que os alemães são rígidos e distantes, mas neste aspecto são muito mais descontraídos do que os portugueses.
Num contacto mais formal basta usar ‘senhor/a’ antes do nome.
O ‘doutor’ fica reservado para casos muito específicos. Nós, apesar de gostarmos de nos apresentar como um povo afável e que gosta de cultivar relações de proximidade, começamos por nos distanciar por causa da existência, ou não, de um título académico.
Numa sociedade que parece valorizar cada vez mais o ter e o parecer do que o ser, não é por isso de estranhar que não haja jovens a quererem entrar nas chamadas profissões tradicionais.
Nesta edição, José Luís Sismeiro, presidente da Associação Regional dos Industriais de Construção e Obras Públicas de Leiria, diz que é hoje muito difícil captar um jovem para esta área, tal como o será para muitas outras.
“Nenhum pai quererá ter um filho pedreiro em vez de engenheiro”, dizia numa outra ocasião o seu antecessor.
No entanto, se for um bom profissional, um pedreiro, tal como um canalizador, um carpinteiro ou um electricista, ganha actualmente um ordenado “claramente recompensador”, e muitas vezes “acima da média salarial do País e mesmo superior ao de muitos licenciados”.
Mas, como afirma o presidente da Aricop, “a imagem das profissões tradicionais está muito distorcida” e muitos jovens não se imaginam numa destas áreas.
Também é verdade que há tantas profissões que os jovens desconhecem completamente que é difícil saber o que escolher, sobretudo quando se lhes pede que, ao ingressarem no 10.º ano, optem entre áreas tão distintas que mais tarde condicionam o resto do percurso académico.
Ninguém dúvida que a formação é fundamental e que uma licenciatura hoje vale o que valia o 12.º ano há duas décadas.
Tal como também diz José Luís Sismeiro, actualmente “saber assentar um tijolo é muito pouco para quem está na actividade [de construção]”. São precisos recursos humanos com formação, quer nesta área quer noutras ditas tradicionais.
E é precisa também maior valorização social destas profissões.