Opinião
Emigra Cão
"Quando olhamos o jardim, nunca vemos o jardineiro"
Quando olhamos o jardim, nunca vemos o jardineiro.
As rosas escondem os espinhos, como a terra esconde o estrume, como as mãos escondem os foles. Todos os jardins escondem agruras. Todo o êxito esconde tragédias.
Não suportou a tortura. Não quis ir à guerra. Fugiu. Fugiu da miséria, da tirania e da fome. Abdicou para sempre dos filhos, ainda inocentes e esperançosos. Abandonou os pais, já velhos e derrotados. Fugiu. Fez-se ao mar numa barcaça precária. Foi a salto pelas quelhas do contrabando. Sobreviveu por sorte às vagas do oceano. Escapou por pouco às garras da prisão.
Para trás ficaram ermos os lugares da sua infância, onde, asfixiadas pelo peso da tormenta, morreram as escassas alegrias que conhecia. À sua frente, bem longe nos recônditos recantos do pensamento, avistava a miragem do descanso e da abundância. Bem longe, à deriva no deserto do desespero, avistava apenas a esperança.
Chegou com a roupa do pêlo. Guardava toda a sua existência numa mala de cartão. Ali estava o jardim. Ali desabrochavam as rosas com que sonhara, soltando o doce perfume da paz e as vibrantes cores da fraternidade.
Procurou trabalho, encontrou servidão.
Procurou um lar, encontrou o bidão.
Desconhece o idioma. Não tinha papéis. Encargos, dívidas, obrigações. Enterravam- se os pés na lama da negligência. Dorme. Deita-te com o medo e dorme na cama do esquecimento. Na pele do jardineiro, todos os espinhos se enterram.
Os jardins florescem descontroladamente. Por toda a parte alastram as suas flores, que brotam da terra aos milhões, para afogar com a frescura das suas fragâncias os limites da imaginação. Transbordam de fragâncias e de matizes, inundam de vigor e alegria, submergem toda a existência dos homens no deleite e na exultação da sua própria fortuna.
Afogado no desprezo, o jardineiro não se vê. Mas o jardim, sim, continua lindo.
Emigra cão, que não vales um chavo.
Para onde, se me fazem escravo?