Opinião
Hoje não me apetece
As coisas escutadas, lidas e voltadas a escutar hoje na aparência até parecem as mesmas, mas ou do vinho ou das ondas circulares do carrocel, parecem diferentes
Há dias assim, como o de hoje, em que não me apetece chatear com nada. Sentar-me no Praça, aquecer as mãos na chávena e beber um cafezinho quente, por vezes, é quanto basta para um tipo sentir que aquele momento vale por um dia.
Olha-se pela montra do café e lá fora Natal postiço decora a paisagem. Cá dentro está um calor que cheira a grão de café moído. Ler um jornal (se bem escolhido, claro está!) ajuda bastante ao bem-estar, sobretudo se confrontarmos os artigos de opinião, declarações e outras análises, com o que ontem à noite vimos no noticiário de um canal televisivo (se bem escolhido, claro está!).
Se a isso somarmos as apetitosas conversas escutadas nas mesas periféricas, o ramalhete fica perfeito. Subitamente sentimo-nos numa espiral estonteante. Qualquer coisa parecida como o ter bebido um belo copo de vinho (se bem escolhido, claro está!) e depois entrarmos para um carrocel de feira, daqueles antigos com cavalos e girafas pintados de cores impossíveis.
As coisas escutadas, lidas e voltadas a escutar hoje na aparência até parecem as mesmas, mas ou do vinho ou das ondas circulares do carrocel, parecem diferentes. Ou talvez sejam as mesmas apenas vistas por perspetivas diferentes, que afinal são iguais. Ou são mesmo diferentes, mas ditas de um modo que as tornam iguais entre si. Ou então concluo que sou mesmo um inapto para a análise política, sendo que me resta saborear o cafezinho e ficar caladinho no meu canto.
Acontece que um sujeito sente a necessidade de pertencer a qualquer coisa maior que si mesmo. Sendo que não sou adepto de nenhum clube de futebol, não me revejo em qualquer igreja, seita ou mesmo agremiação de interesses, não vejo possibilidade de me candidatar ao que quer que seja. Mas como não posso de sentir a necessidade de pertencer a uma coisa qualquer mais vasta, entrego-me ao delírio dormente de me imaginar a propor obra para os demais cidadãos.
Assim, a título de ensaio e para não prejudicar sobremaneira a vida de ninguém, dou por mim a desenhar um cemitério para o futuro. Coisa sã e escorreita, de baixo custo e virada para a modernidade. Obra encomendada a arquiteto de nomeada para parecer coisa com rigor conceptual. Imagine-se, pois, um espaço verdejante (para poupar recursos, os corredores poderiam ser atapetados com a relva sintética que vai sobrar dos estádios de onde vai ser excluída). Construção em banda, com três andares no máximo (note-se que se evitavam os ascensores). Esquifes arrumadinhos em paredes pintadas de cor-de-coisa-nenhuma (vulgo, bege).
Na face acessível para os visitantes (familiares saudosos ou outros) um pequeno écran tátil, programado com Inteligência Artificial (IA) e que nos permitiria rever os momentos partilhados com o finado, a sua biografia e outros pormenores com que a IA nos quisesse presentear. Reconheço que é promessa modesta para um putativo candidato a qualquer coisa. Mas, que diacho, comparada com a tômbola de promessas que candidatos de verdade têm feito nos últimos dias, não me parece disparate maior que os demais.