Opinião
Letras | A música, a escrita: entre o amor e a violência...
Os livros de Afonso Cruz – à volta de três dezenas – estão publicados em vários países e tem obtido prémios nacionais e internacionais, praticamente todos os anos
Afonso Cruz (n. 1971) tornou-se, em poucos anos, um caso complexo, rico e reconhecido de sucesso em várias áreas artísticas: escritor, ilustrador, cineasta e músico da banda The Soaked Lamb. Os seus contributos ensaísticos são publicados no ‘Jornal de Letras, Artes e Ideias’. Os seus livros – à volta de três dezenas – estão publicados em vários países e tem obtido prémios nacionais e internacionais, praticamente todos os anos. Destaco a contribuição na área da literatura para a infância e juventude, onde a ilustração é, em si mesma, um texto-outro.
No caso do romance Nem todas as baleias voam, de 2016, o leitor adulto envolve-se numa intriga policial que conta a história do plano ‘Jazz Ambassadors’, engendrado pela CIA em plena Guerra Fria, com a missão de cativar a juventude de Leste para a causa americana através da organização de concertos com grandes nomes do jazz (veja-se as 5 páginas da Abertura). Erik Gould, exímio e apaixonado pianista de blues, que vê sons em todo o lado e pinta retratos tocando piano, seria o indicado para a missão, não fora o estado depressivo em que o deixa o desaparecimento da sua muito amada mulher Natasha – de um dia para o outro e sem deixar rasto.
A narrativa divide-se entre o relato omnisciente dos dias de Erik e do seu filho Tristan, dos amigos Isaac Dresner e Clementine, e dos diálogos objetivos-técnicos (grafados num tipo de letra diferenciado), intitulados “Relatório Gould”, correspondentes ao desenrolar do plano ‘Jazz Ambassadors’, entre o homem do chapéu cinzento e o seu superior hierárquico. Entre os dois, há episódios de um mundo paralelo, mais ou menos sórdido, e que de início parecem estar desligados. É o que acontece com a personagem do Escritor, que manipula na cave seres humanos (um bancário, uma mulher de 36 anos, uma mulher ruiva), a matéria dos seus livros.
“[…] A ideia de obter ficção através da tortura surgira-lhe há cinco anos, quando começara a trabalhar na agência. […] É assim que nasce a inspiração. […] através da tortura, extrair a ficção, a fantasia – aquilo a que o inquisidor normal chamaria mentira, mas que um escritor chama ficção, matéria romanesca, criatividade. […]” (opus cit., pp. 177-8)
O leitor vai tendo vários indícios que lhe permitem fazer a ligação entre este Escritor e o ‘monstro’ que é o homem do chapéu cinzento (a viver ‘sozinho’ com a mãe…), bem como entre a ficção produzida na cave e os sonhos de Tristan, incentivado por Clementine a guardar numa caixa de sapatos todos os objetos que para si são importantes. Tristan encontra o caderno que faltava do Evangelho das Coisas Gnósticas e fica encantado com um poema dum folheto do Museu do Sentido da Vida. Escreve uma carta para o pai, Erik, que termina com o que poderia ser (e é…) a conclusão desejada deste romance: “Se morrer antes de ti – pode acontecer –, gostava muito que coxeasses por mim.” (opus cit., p. final do epílogo) – a arte aliada ao sofrimento.
As mensagens arquivadas pela CIA, enviadas quer em garrafas para o oceano quer em concertos, de Erik para Natasha, constituem 9 belíssimas cartas de amor. Mas a carreira de Gould na missão foi um fracasso; já a do Escritor ‘permanecia intacta’ (opus cit., p. 266). A violência sai vitoriosa…