Opinião

Letras | Às vezes o amor...

16 fev 2024 09:00

Se não sonharmos em verbo a antítese do que ainda acontece, não podemos falar de amor

Dizem que fevereiro é o mês dos gatos, e do amor, e dos namorados. Alturas de chocolates e corações e vermelhos nas montras.

Às vezes o amor... no calendário...

Talvez fosse momento para pensar em amor e companheirismo no ano inteiro e respeito por homens e mulheres, por cada pessoa tal qual ela é.

Que caminho longo ainda temos que percorrer... longe de chocolates e perfumes, ou por oposição a ausência deles, que também sabem bem às vezes.

Diz-se que há histórias de regiões circumpolares que descrevem o amor como a relação entre dois seres, onde o amor não significa a sedução ou o prazer de egos, mas um vínculo que perdura, generoso, desde os dias mais complicados aos mais simples. Parece tão fácil não é? Li-o algures no livro Mulheres que Correm Com os Lobos, de Clarissa Pinkola Estés.

Pois, talvez este é ou não é devesse estender-se ao mundo inteiro: sim devia ser assim a partilha, o companheirismo e o amor, mas ainda que se diga que o paradigma está a mudar, tendo a não concordar. O ónus da responsabilidade familiar continua na mulher, que para além de muitas tarefas caseiras rotineiras, continua a trabalhar e a lutar para ter uma carreira num mundo que é dos homens. Sim, diz-se por aí e podem refutar-me que já se tenta a igualdade e a paridade e que as que se impõem vingam, e assim e assado, que a lei protege as mulheres... patati e patatá... mas na violência doméstica, que pode ser porque se impõem, ou porque ainda se acredite que são escravas e têm “obrigações” para cumprir, sim, são elas que continuam a ter de sair de casa, a explicar tudo pelo que passaram e de que acusam, sujeitas a humilhar-se e responder as vezes que lhes for perguntado, pelos agentes, assistentes, juízes, etc... a provar que falam verdade... a justificar-se...

Por amor ceguei-me, cheguei-me,
De bengala branca, tatiei no escuro
De bengala rosa, por amor procuro
Uma flor secou e em botão renasce
Será que traz veneno e paixão desfaz-se
(“Tudo no amor”, Clã)

São as mulheres que continuam a ter de ver onde deixar os filhos, para ir a coisas que as acrescentam, a certificar-se que lancharam, a fazer os lanches para levarem para o futebol, ou se a roupa dos equipamentos está lavada, ou se a mochila foi com os livros todos para a escola, ou se estudou o suficiente para os testes. Ai senão... que anda por lá e não quer saber... No meio disto tudo ainda há que ver se têm tempo para ganhar o suficiente para comparticipar nas despesas da casa ou se podem bater com a porta e levar os filhos, ou se outras mulheres dizem que há que aguentar porque os homens são assim.

Não sou de novelas, mas há dias a SIC estreou a novela Senhora do Mar. Uma só visualização breve dava todo um livro sobre como uma mulher bonita, empática e com uma carreira brilhante, e com alguém ao lado que a maltrata e subvaloriza, manipula, tem de abdicar de si e refugiar-se escondida em luta pela vida, anular-se, fugir... E depois há as que são notícias todos os dias, que já não reescrever a sua história, e que já parece algo tão banal, que até se muda de canal...

Mas não pode ser.

Não se trata de educar miúdos e graúdos de géneros mil para a igualdade, mas para o respeito, partilha e companheirismo. Para a divisão de tarefas que não são ajuda, são um dever... um porque tem de ser, para o respeito mútuo e para o amor. Para as aprendizagens partilhadas, para a cumplicidade. Era bom que a vida não fosse como as novelas, ou os filmes de autor, ou como os romances do Rodrigo Guedes de Carvalho.

Enquanto mulher pode parecer egoísta, ter estes desejos para todas as pessoas, tendo um conta o mundo virado ao contrário em que vivemos hoje, em que parece que se esvai cada vez mais a paz perpétua. Mas quem sabe possamos começar por algum lado.

Se não sonharmos em verbo a antítese do que ainda acontece, não podemos falar de amor.

Às vezes o amor
No calendário, noutro mês é dor
É cego e surdo e mudo
Às vezes o amor
No calendário, noutro mês é dor
É cego e surdo e mudo
E o dia tão diário disso tudo
(“Às vezes o amor”; Sérgio Godinho)