Opinião
Letras | Daniel Faria (2021) Sétimo Dia OU a eternidade do espírito…
A minha leitura é a de que Daniel Faria perseguiria nesta obra o percurso de transformação do corpo vivo, nos seus vestígios ínfimos, até alcançar o corpo glorioso
A morte prematura de Daniel Faria (1971-1999) fez dele um rapaz raro e as edições póstumas revelaram ao público a aparição de um poeta místico: “Nunca atirei a pedra exacta para o lugar certo. E abri feridas em todas as direcções.” (opus. cit., p. 56)
No prefácio da edição da Assírio & Alvim, de Francisco Saraiva Fino, ficamos a saber que Daniel Faria era um assumido e compulsivo leitor do texto bíblico e que acreditaria na transformação das memórias das angústias do ser imanente para os mistérios da perfeição livre do espírito.
Tal como outros projetos do poeta, também este chegou inacabado. Após o seu falecimento, uma parte do espólio ficou recolhida no mosteiro de Singeverga, onde se encontrou um conjunto de 14 folhas A4, sem título, e que veio a ser identificado como “Primeiro Homem”. A estudiosa Vera Vouga recorreu a uma cópia incompleta, de uma fase anterior e, em 2004, publica a secção “Terceiro homem. Terceiro dia”, mas sem indicação de título global do projeto. A descoberta de ficheiros guardados em disquetes e no computador do poeta, em Singeverga, veio contribuir para o conhecimento de outras fases, talvez mais antigas. A presente edição, nas notas de rodapé e no aparato crítico final, faz referência às variáveis encontradas nos três testemunhos informáticos e evidencia o carácter metódico do trabalho poético de Daniel Faria. É precisamente a tendência constante para riscar, reformular ou conservar, em atitude de contemplação e escuta, versos mais tarde reconduzidos a outros contextos poéticos, que faz com que Fino seja tão cauteloso em propor balizas ad quem (1993-1994: génese?) e a quo (1997? 1998?) para este projeto. Quanto à proposta do título da edição, leia-se a explicação do prefaciador:
“[…] Sétimo Dia resume neste momento a coesão possível de uma obra inacabada, atravessada por divergências e aproximações que os interlocutores humanos nela representados tendem a polarizar em torno de uma perspectiva de tempo a cumprir, segundo a qual o corpo vai consumando o destino da sua existência contingente em contínua afinidade com a memória futura do seu duplo glorioso.” (opus cit., p. 18)
A edição é constituída por 5 partes, e não 7, como o título parece deixar entrever e provavelmente os estudos indicam, correspondendo à intenção, não acabada, deste projeto de Daniel Faria. Assim, “Primeiro homem. Primeiro dia” compõe-se de 24 poemas; “Segundo homem. Segundo dia” apresenta também 24 poemas; “Terceiro homem. Terceiro dia” 19 poemas, já que dos poemas 18 ao 23 apenas havia a indicação numérica de inclusão, embora o texto não tenha sido encontrado; “Quarto homem. Quarto dia” tem 15 poemas, embora o último da secção apareça com o número 24; “Quinto homem. Quinto dia” apresenta 24, ficando o número 19 em branco. É provável que a numerologia das duas dúzias estivesse entre os planos do poeta para cada uma das partes…
A minha leitura é a de que Daniel Faria perseguiria nesta obra o percurso de transformação do corpo vivo, nos seus vestígios ínfimos, até alcançar o corpo glorioso, transformado a partir da fragilidade da carne – nos seus sucessivos desastres – até ao mistério da livre perfeição do espírito. A despropósito – ou não – o primeiro percurso da vida terrena é o da bondade (“A minha maneira de curar-me é perdoar as ofensas.” p. 33); daí a simbologia da travessia do deserto: “[…] Pensa, então, não que a vida te abandona, mas que te leva. / A viuvez e o luto são mais do que o sofrimento. A tarefa da vida é o deserto de te gastares. […]” (p. 37) e a resistência aos desastres (“Disseram que teriam de me cortar o braço […]” p. 59; “Podem cortar-me o coração que eu vivo.” p. 60; “Agora tenho uma caligrafia mais demorada mas mais certa, tenho a mão esquerda muito humilde, tanto quanto tinha a mão direita cheia de soberba.” p. 63). Intermitentemente, a imagem do corpo glorioso vai começando a delinear-se (“É a raiz o meu corpo glorioso, a mão que já bate à porta do céu?” p. 81; “Penso […] No que será dizer ‘purifica-me’.” p. 88; “Quero estar ao lado dos que não têm amparo, ser eu a perguntar-lhes, estás melhor?” p. 99; “Há depois o silêncio, sim. […] e espero-as tanto, as tuas mãos.” p. 119). E é com a imagem da Mãe que o renascer, a passagem entre dois mundos se revela inexplicavelmente antevista (“Sinto a terra tremer. Tu estás tão quieta a enfiar a linha nas agulhas. A passagem é tão estreita. A salvação. Eu quero emagrecer. Eu quero perder tudo.” p. 135; “Sinto o fogo dos ressuscitados. Tu podes atear-me, mesmo em silêncio. Tu podes dar-me à luz.” p. 145).
Para mim não é de admirar que o 6.º e 7.º dia não tivessem sido escritos/registados: a Mãe assume-se como a guardiã de e para a eternidade do espírito: “Mãe, estou aqui. / É como se caminhasse sobre as águas. É como se ouvisse um caminho a chamar-me do fundo. / Do fundo. / Como se a morte me desse uma direcção.” (p. 153).