Opinião
Letras | David Teles Ferreira (2024) Bom dia, dona Maria! novela e contos OU o envelhecimento em nós
A lucidez crítica dos pensamentos de alguém que a sociedade já não quer/deseja ouvir porque revela – por vezes numa linguagem desbragada e escatológica – o trágico futuro destinado a todos
Se é a invisibilidade voadora do eu-narrador de Nariz de mulher, focinho de cão, cu de gente (2021) que permite ao leitor, através de um ‘realismo mágico’ bem humorado, perceber o delírio do quotidiano que todos habitamos, passados três anos a caricatura de algumas situações não abandona o registo quase dramático (sobretudo dos contos, mas igualmente em várias cenas da novela) do novo livro de David Teles Ferreira, Bom dia, dona Maria! – porém trata-se agora de um registo mais trágico, de que se entretece a temática do envelhecimento, da doença e da morte.
Não estive presente na sessão de apresentação do livro, por Luís Mourão, de que me penitencio publicamente, mas acredito que todos os escritores ‘respiram literatura’ e a minha leitura da novela que intitula o volume transportou-me, de imediato, para Último Olhar (2021), de Miguel Sousa Tavares e Misericórdia (2022), de Lídia Jorge. De um registo mais assético, a roçagar a reportagem jornalística e a exigir ao leitor as ilações hermenêuticas fundamentais sem as quais a leitura literária não funciona, até uma planície de emoções complexas, contempladas, vividas e conflituais entre as várias personagens e as correspondentes perspetivas narrativas, a tocar a excelência de um livro sobre tabus que preferimos ignorar, encontrei o foco da autobiográfica narradora Amélia, zangada idosa de um lar a quem todos tratam por ‘dona Maria’.
E se ‘Madame Bovary, c’est moi!’, dona Maria somos todos nós, que envelhecemos, sabemos estar a envelhecer e conhecemos as instituições-lares que nos estarão reservadas. O silêncio a que Amélia se força (ou pelo qual decide ou resulta de maleita…) é o motor desta intriga: a lucidez crítica dos pensamentos de alguém que a sociedade já não quer/deseja ouvir porque revela – por vezes numa linguagem desbragada e escatológica – o trágico futuro destinado a todos. Leia-se um excerto (aleatório?!) do discurso indireto livre dos que têm voz e de dona Maria que tem a consciência (auto)crítica do raciocínio impoluta sobre a situação em que se encontra:
[...] Um dia parece que estão a morrer e no outro… suponho que a velhice seja mesmo assim. A velhice é uma merda, mas aturar estes paleios, e ainda por cima à nossa frente, é um inferno antes do dito, porra que não há cu que aguente, será por isso que tantos velhos se cagam? será que outros que eu vejo tão caídos como eu deixo parecer que estou estão na realidade a disfarçar como eu e fazem essas coisas só para chatear os mais novos? também é maldade a mais, se assim for, eles não fazem por mal, e até cuidam de nós o melhor que sabem, porque são pagos, eu sei, mas mesmo assim. [...] (opus cit., p. 18)
Deixo para surpresa do leitor os vários episódios caricatos que a sociedade (todos nós…) impõe aos velhos e como a respiração da literatura é outro dos refúgios de Amélia / Maria, leitora de Raul Brandão, Júlio Dinis, Eça de Queirós, Aquilino Ribeiro, Afonso Lopes Vieira, Alberto Caeiro, Saint-Exupéry. O cânone assim revelado – nas citações bem destacadas – ao mesmo tempo que mostra a identidade de uma geração em que foi educada, evidencia o poder salvífico da arte em contextos de desconforto humano.
Uma vez que a procura da intencionalidade biográfica na crítica literária supostamente já não existe, encontra o seu reverso na receção pragmática e sociológica dos textos: a envelhecer com poder crítico, ironia e sabedoria – é necessário ao leitor nunca perder a voz para que o lar (seja ele qual for) ouça o apelo...