Opinião

Letras | Falemos de baratas

19 dez 2025 07:30

Duas excelentes obras para se colocar no par de sapatinhos neste Natal e caminhar no mundo do existencialismo humano

Ainda não tinham aparecido os dinossauros no nosso planeta e já as baratas organizavam grandes festarolas nas florestas tropicais do Carbónico (Florestas de Carvão). Assim provam os achados fósseis de baratas com mais de 300 milhões de anos. Em Portugal, identificaram-se vestígios de uma barata primitiva do grupo “roacóides” (já extinto) na Bacia do Buçaco.

Apesar de não reunirem simpatia, as baratas são uma das espécies mais resistentes do globo. Sobrevivem até 90 dias sem comida e 40 dias sem água. Apreciam calor, humidade, lixo e restos de comida. Por serem fotossensíveis, escondem-se em locais escuros durante o dia e saem na tranquilidade da noite.

Estes insectos, além de transmitirem doenças, também mordem. Para se alimentarem, podem mesmo mordiscar as mãos e os pés das pessoas enquanto dormem.

Mas, enquanto muitas baratas representam risco para a saúde, outras são alimento para os humanos. É o caso da barata-de-madagáscar: um pitéu que chega aos nove centímetros e muito rico em proteína. Que o digam os japoneses, muito apreciadores do snack.

O contraste da repugnância com a resistência torna as baratas muito apetitosas no mundo literário. O famoso livro A Metamorfose, de Frank Kafka, publicado em 1915, aborda a transformação de Gregor Samsa num gigante insecto. O autor, nascido no bairro judeu de Praga, utiliza a barata como metáfora do isolamento humano na sociedade moderna. Gregor transforma-se no monstruoso bicho para deixar de ser um fardo para a família.

Em 1922, a escritora Clarice Lispector, nascida na Ucrânia, emigrava para o Brasil com a família para fugir da perseguição aos judeus. Em 1964, publicou um dos seus mais célebres romances: A paixão segundo G.H.. É o aparecimento de uma barata no guarda-roupa no quarto da empregada da protagonista (G.H.) que leva à reflexão sobre o sentido da vida com paralelismos com a condição da barata: a barata e a sua longevidade na Terra; a resistência da barata em oposição à fragilidade humana. De acordo com Benedito Nunes, estudioso da obra de Lispector, “o insecto de Kafka é alegórico enquanto o de Clarice é real”.

São duas excelentes obras para se colocar no par de sapatinhos neste Natal e caminhar no mundo do existencialismo humano.